sábado, 12 de agosto de 2006

TEORIA DO CONHECIMENTO EM MATURANA E VARELA – MOVIMENTO REALIDADE E AUTOPOIESE –[1]

Texto apresentado ao Departamento de Nutrição da UFPB como parte das exigências para obtenção da progressão vertical de Professor Assistente IV para Professor Adjunto I.

Lindemberg Medeiros de Araújo[2]

RESUMO

Este é um ensaio sobre “A Árvore do Conhecimento”, obra escrita por Maturana e Varela. Nele são tentadas algumas aproximações entre o pensamento e o método dos autores e a dialética, especialmente através de uma das categorias que lhe é imanente: o movimento. A teoria da autopoiese é dissecada enquanto o conceito central da obra.

Palavras chaves: movimento, dialética, autopoiese.

ABSTRACT

This is an essay about Maturana and Varela´s book, “The Tree of Knowledge”. My aim is to unveil some similarities between the tradition of dialectic and the authors’ method and thought, specially throughout one of the categories that is immanent of dialectic: the movement. The autopoieses theory is analysed and presented as the main concept of their theory.

Key words: movement, dialectic, autopoieses.

INTRODUÇÃO

Costumamos dizer que a filosofia antecedeu a ciência uma vez que foi a primeira tentativa de sistematização do conhecimento. O exercício de leitura de A Árvore do Conhecimento[3] leva-nos a reverberar sobre a filosofia e o método da ciência que subjaz às idéias e conceitos emitidos pelos autores, especialmente quando questionam o representacionismo e o cartesianismo da ciência clássica moderna. Na obra em questão, filosofia e ciência estão amalgamadas formando uma totalidade que, longe de ser unívoca, parece nos convidar para uma reflexão sobre o movimento, e suas contradições, enquanto categoria básica da dialética.

A produção de Maturana e Varela faz-nos pensar sobre a história dos fenômenos biológicos e humanos e sobre a nossa trajetória na face da terra. Ao recuperarem a nossa história biológica mostram-nos, aliás, como Piaget, que os fenômenos humanos são biológicos nas suas raízes, sociais nos seus fins e mentais nos seus meios.

A leitura desses pensadores leva-nos a perceber o quanto as suas teorias ajudam a repensar outras áreas do conhecimento como, por exemplo, a pedagogia, a psicologia, a sociologia, a economia e a comunicação, pois, ao adentrarmo-nos nos processos biológicos e sociais que comandam o desenvolvimento do sistema nervoso, o cérebro e os atos cognitivos, processos que justificam a nossa humanidade e racionalidade, permite-nos ver, com mais detalhe, como somos capazes de representar, e assim, transformar o mundo.

E como se torna impossível tratarmos de forma mais aprofundada as diversas conseqüências geradas pela teoria do conhecimento que perpassa a obra A Árvore do Conhecimento, nos propomos a abordar a dialética que nela se revela. Assim, tentaremos fazer algumas aproximações do pensamento e método dos autores com a dialética, especialmente através de uma das categorias que lhe é imanente: o movimento.

MOVIMENTO E REALIDADE

A noção de movimento enquanto exercício teórico de apreender a realidade nos acompanha desde a Grécia antiga, desde os primórdios do pensamento filosófico ocidental, quando os gregos passaram a se interessar e perguntar acerca do movimento das coisas. Nesse sentido, questões como a origem do mundo, da natureza e da vida, a reprodução e evolução dos seres vivos e a tentativa de explicação da contradição entre a vida e a morte e a perpetuação e desaparecimento das espécies, já estavam presentes no período pré-socrático ou cosmológico.

Melo Neto (1996) ao sintetizar os períodos que marcaram o pensamento grego antigo, num ensaio sobre o movimento e seu diálogo com a natureza, nos dá conta de que

“Das várias características da cosmologia salienta-se o seu caráter explicativo, racional e sistemático sobre a origem do mundo, a transformação da natureza e, explicando-o, mostra também a origem e as mudanças dos seres humanos” (MELO NETO, 1996, p. 08)

Seguindo na trilha desse autor, destacamos, entre os filósofos pré-socráticos, Heráclito de Éfeso, o primeiro filósofo a contemplar o movimento e relacioná-lo com a mudança e a contradição, aspectos fundamentais presentes nas relações do homem com a natureza e na natureza. Heráclito tentava compreender e explicar a dimensão de movimento que se expressa na mudança de qualidade ou quantidade das coisas, especialmente as da natureza. O seu estudo do movimento nos leva de saída ao conceito de physis.

A physis como a base de tudo. Como o princípio que nos faz compreender o mundo que nos rodeia e que adquire, dentro da dinâmica do princípio inteligente, circunstância e significado. A physis pode, se quisermos, assumir diferentes denominações para um mesmo sentido: espírito, pensamento, inteligência, palavra, cultura. Para os pré-socráticos e especialmente para Heráclito, ela denotava a própria natureza em seu movimento natural, movimento que se faz na gênese das coisas e de si mesma trazendo no seu bojo a mudança e a contradição.

[A] Physis pode ser apreendida em tudo que acontece. Constitui a totalidade de tudo que é. Ela está na aurora, no nascimento das plantas, no nascimento de animais e homens. Pensando a physis, o filósofo pré-socrático pensa o ser. Pensa a compreensão da totalidade do real – cosmos, deuses, homem, verdade, animado e inanimado, sabedoria, política e justiça. Pensar a physis é pensar o movimento (MELO NETO, 1996, p.12).

A leitura de alguns fragmentos, os que chegaram até nós, dos escritos de Heráclito demonstra que ele entendia que a lei fundamental que governa o universo é a luta entre os contrários, luta que em última análise constituem uma unidade profunda. A contradição que está presente em Deus que é dia e noite, guerra e paz, inverno e verão, fome e saciedade (fr. 67); que se expressa nas correlações mais variadas como as que existem entre completo e incompleto, concorde e discorde, harmonia e desarmonia e de todas as coisas um, e de um, todas as coisas. (fr.10).

O movimento, a mudança e a contradição, presentes nas coisas, para Heráclito, aparece também no fragmento 50, que afirma a unidade que existe entre o separado e o não separado, o mortal e o não mortal, o gerado e o não gerado, a palavra (logos) e o eterno, o pai e o filho, Deus e a justiça. É sábio que os que ouviram, não a mim, mas as minhas palavras (logos) reconheçam que todas as coisas são um (fr.50).

Por sua vez, no fragmento 193 ele defende que na circunferência, o princípio e o fim se confundem. Que há, ainda que oculta, uma harmonia no universo. Uma harmonia que não é estática, mas equilíbrio dinâmico das tensões entre os contrários. Uma harmonia tensa como ocorre entre o arco e a lira (fr.53). A unidade das coisas é algo constitutivo da própria physis.

Cordon & Martinez (1983), entretanto, nos alertam para o perigo de apreendermos o pensamento de Heráclito como algo caótico no seu vir a ser, no seu devir. Assim defendem que o devir não se estabelece como uma irracionalidade absoluta do real, já que está submetido à lei da identidade e se submete a suas regras e proporções. “A lei, ou logos, interna do devir universal constitui o verdadeiro princípio educativo do universo” (CORDON & MARTINEZ, 1983, p. 33).

Mas esta compreensão, já na Grécia antiga, estava longe de ser única, tanto que vários outros pensadores e filósofos da época se colocavam em oposição ao pensamento de Heráclito. A sua visão era diversa em relação, por exemplo, ao pensamento de Parmênides, que defendia a imutabilidade das coisas e não compreendia como seria possível algo deixar de ser o que é para tornar-se outra coisa.

Este filósofo, também pré-socrático, não compreendia como o movimento e a mudança poderiam estar presentes em todas as coisas. (...) “em nós manifesta-se sempre uma e a mesma coisa: vida e morte, vigília e sono, juventude e velhice. A mudança de um dá o outro e reciprocamente”, (fr.88) era o que afirmava Heráclito. Como ser e não ser ao mesmo tempo? Era a pergunta que brotava da mente e da incompreensão de Parmênides.

Contemplando esta divergência, Konder (1990) reconhece que o pensar estático de Parmênides logrou bem mais êxito entre os gregos da época, afinal tornava-se bem mais inteligível e passível de aceitação “essa linha – que podemos chamar de metafísica – [que] acabou prevalecendo sobre a dialética de Heráclito”. (KONDER, 1990, p. 09).

Posto que a sua formulação sobre movimento chamou-nos a atenção para a dialética, o pensamento de Heráclito possibilitou, e possibilita ainda hoje, diferentes interpretações. Basta que examinemos, com a ajuda de Konder (1990), as diferentes interpretações de Hegel e Marx sobre esta mesma questão. Em Hegel o movimento e a dialética, tratados no campo das idéias, se afastam de alguma forma da formulação original de Heráclito. Já em Marx, que admite a anterioridade da matéria, a aproximação é, ao que parece, mais evidente. Senão vejamos:

“Hegel descrevia o processo global da realidade da seguinte maneira: a idéia absoluta assumiu a imperfeição (a instabilidade) da matéria, desdobrou-se em uma série de movimentos que a explicitavam e realizavam, para afinal, com a trajetória ascensional do ser humano, iniciar, enriquecida – o seu retorno a si mesma”. (KONDER, 1990, p. 51)

Como podemos ver, Hegel, por seu idealismo, possuía uma concepção fechada do movimento da realidade; fechada porque supunha o conhecimento do ponto de partida e do posto de chegada do movimento da realidade. Aliás, a visão de identidade em Heráclito também parece padecer do mesmo problema. Em Marx vemos o contrário da posição hegeliana. O movimento é concebido como uma totalidade, uma realidade aberta, nunca presa a esquemas que pretendam aprisionar a infinita riqueza do real ao conhecimento.

“O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, isto, é unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como o processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida da intuição e da representação (...) Por isto é que Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que se sintetiza em si, se aprofunda em si, e se move por si mesmo; enquanto que o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo como concreto pensado. Mas esse não é de modo nenhum o processo da gênese do próprio concreto. (MARX , 1987, p. 16-17)

A visão marxiana do movimento, assim como da realidade, é múltipla. Por isso a sua conceituação é fluida e, portanto, próxima da de Heráclito.

Trazendo a discussão do movimento para o que nos interessa, ou seja, para a teoria de conhecimento presente em Maturana e Varela, o que pretendemos daqui para frente é demonstrar a convergência entre os conceitos que estes autores formularam para explicar o movimento da autopoiese e a noção de physis nos gregos – em Heráclito em particular.

AS BASES EPISTÊMICAS DE MARURANA E VARELA: CONHECIMENTO, MOVIMENTO E AUTOPOIESE

Maturana e Varela, na obra que destacamos, partem do princípio de que a vida é um processo contínuo de conhecimento. A conseqüência disso é que se tomarmos como objetivo compreende-la, será necessário entendermos como conhecemos e o que conhecemos. Nesta perspectiva, necessariamente, teremos que nos remeter à experiência cotidiana, ao fenômeno do conhecer. Essa atitude, em princípio, nos leva a três conseqüências que se põem em movimento ininterrupto: olhar, explicar, agir.

Com efeito, se fazemos parte do mundo, vale dizer, da vida, é plausível nos colocarmos no posto de observadores e com a nossa experiência sensível propormo-nos a explicar o mundo tal qual o conhecemos, o que nos leva a um agir conforme experienciamos e representamos esse mesmo mundo.

É aqui que encontramos um primeiro problema: o conhecimento, nas suas diversas formas, tem sido visto pela ciência moderna como a representação fiel de uma realidade independente do conhecedor. Ao olhar o mundo, ao explicar o mundo, e ao agir no mundo construímos representações. O Representacionismo seria, portanto, o marco epistemológico prevalente na nossa cultura. Nas palavras dos autores: “o conhecimento é um fenômeno baseado em representações que fazemos do mundo (...) O mundo conteria ‘informações’ e a nossa tarefa seria extraí-las por meio da cognição”. (pág 08)

Considerando essa visão, o homem tomaria o mundo como um objeto e o exploraria dele tirando benefícios. Aí repousaria a base do nosso modelo científico de cunho extrativista. Nele, a objetividade seria privilegiada e a subjetividade descartada como algo que comprometeria a exatidão científica. Como seres da cultura – onde na essência construímos a nossa pretensa objetividade – temos dificuldade de lidar com tudo aquilo que é subjetivo e qualitativo. Em outras palavras, porque produzimos cultura somos humanos e, em sendo seres da cultura, por vezes esquecemos o que somos. Temos dificuldade de compreender que objetividade e subjetividade e quantitativo e qualitativo mantêm entre si uma relação complementar, dialética; são indispensáveis ao conhecimento e, portanto, à ciência.

Talvez por isso, Mariotti (1999), interpretando Martin Heidegger[4], comente que, para aquele filósofo, temos uma tendência a alienarmo-nos das coisas do mundo, o que faz com que nos esqueçamos do nosso Ser. É essa tal alienação que faz com que nos percamos nas nossas coisas (nos utensílios na terminologia do filósofo). Essa condição nos leva a valorizar em excesso os objetos, em detrimento da nossa própria valorização como seres humanos e, por extensão, negarmos a humanidade dos nossos semelhantes.

Ao nosso ver, o raciocínio de Heidegger entra em conexão com o dos autores que estamos abordando, especialmente quando estes sustentam que a posição teórica do representacionismo extrativista produziu e continua a produzir conseqüências éticas que ficam subsumidas nas práticas sociais.

“Ao nos convencer que cada um de nós é separado do mundo (e em conseqüência das outras pessoas), a visão representacionista em muitos casos terminou desencadeando graves distorções de comportamento, tanto em relação ao ambiente quanto no que diz respeito à alteridade” (pág. 08)

Enfrentando essa discussão a partir de metáforas e fatos concretos que descrevem a nossa experiência sensível, Maturana e Varela buscam abalar em todos nós o edifício da objetividade que construímos ao longo da nossa existência com os tijolos e a argamassa do pensamento linear, onde reside a nossa tentação de certeza.

Contrariando essa tentação de objetividade, assumem na obra A Árvore do Conhecimento, a seguinte tese:

“Vivemos com os outros seres vivos, e portanto compartilhamos com eles o processo vital. Construímos o mundo em que vivemos durante as nossas vidas. Por sua vez ele também nos constrói ao longo dessa viagem comum. Assim se vivemos e nos comportamos de um modo que torna insatisfatória a nossa qualidade de vida, a responsabilidade cabe a nós. (pág. 10)

Dando conseqüência a esta tese, adiantam uma primeira síntese que se torna fundamental para uma conexão de sua obra com a educação popular ao afirmarem que

“Se a vida é um processo de conhecimento, os seres vivos constroem esse conhecimento não a partir de uma atitude passiva e sim pela interação. Essa posição é estranha a quase tudo que nos chega por meio da educação formal” (pág. 12).

Os seres vivos são autônomos, isto é, autoprodutores – capazes de produzirem seus próprios componentes ao interagir com o meio: vivem no conhecimento e conhecem no viver. Disso decorre os aforismos construídos pelos autores para resumirem a sua atitude epistemológica: “Todo fazer é um conhecer e todo conhecer é um fazer (...) Tudo o que é dito é dito por alguém”. (pág. 31).

Os autores partem da fenomenologia biológica e pretendem com ela explicar como conhecemos. Nesse sentido defendem que o fenômeno do conhecimento e as ações dele derivadas resultam da nossa experiência cognitiva; e que esta decorre da evolução da nossa estrutura biológica individual, da nossa diferenciação, única no diverso que constitui a história biológica dos seres vivos no mundo.

Seguindo a sua trajetória de desenvolver a nossa história biológica afirmam que enquanto seres vivos, somos solitários no primeiro ato de conhecer. Solidão que só é transcendida no mundo que criamos junto com ele. É a partir dessa criação que nos fazemos no mundo através do fenômeno da “autopoiese”. Esse termo cunhado pelos autores é derivado do grego poiesis, que denota produção. Autopoiese (autoprodução), portanto, é usado para definir os seres vivos como sistemas que se autoproduzem de modo ininterrupto.

Enquanto seres vivos somos autopoiéticos porque estamos a todo instante recompondo nossos componentes desgastados. E nessa condição somos a um só tempo produtores e produto de nós mesmos. É indispensável, porém, acrescentar que para que os seres vivos exerçam a autopoiese precisam, necessariamente, recorrer aos recursos do meio ambiente, tornando-se desta forma autônomos e dependentes. Condição que encerra em si uma contradição, um paradoxo.

Contradição que os autores afirmam jamais poder ser entendida usando-se simplesmente o pensamento linear formatado em termos de construções de natureza binária. Mas que, por outro lado poderá se tornar compreensível, por exemplo, através do pensamento complexo proposto por Morin; quando este defende uma complementaridade entre o raciocínio sistêmico e o linear. (Mariotti, 2000)

Para Maturana e Varela, só quando procuramos compreender o caráter sistêmico da célula é que conseguimos entender adequadamente os organismos e suas conseqüências. Esse movimento é que constitui o que chamam de biologia da cognição. Neste sentido, explicam o fenômeno do conhecer tomando a universalidade do fazer no conhecer e submetendo o seu objeto aos critérios formais de validade científica: descrição do fenômeno; proposição de um sistema conceitual explicativo do fenômeno; dedução, a partir de b, de outros fenômenos associados ao seu fenômeno e, observação desses outros fenômenos deduzidos a partir de b.

Assim, definem o fenômeno do conhecer como “uma ação efetiva, ou seja, uma efetividade operacional no domínio de existência do ser vivo. (...) ação que permita um ser vivo continuar sua existência em um determinado meio ao fazer surgir o seu mundo” (págs. 35/36).

FENOMENOLOGIA BIOLÓGICA: MOVIMENTO E AUTOPOIESE

Para que compreendamos a fenomenologia biológica, os autores nos levam de volta a bilhões de anos atrás e recuperam na história biológica os conceitos de distinção, organização, estrutura, acoplamento estrutural e deriva filogenética, bases para o entendimento da autopoiese e da nossa evolução enquanto seres vivos.

A vida dos seres vivos na terra, seguindo o raciocínio da fenomenologia biológica, está ligada às condições anteriores de organização que permitiram a existência dos átomos; que permitiram que estes formassem as primeiras moléculas; que estas se combinassem e se agrupassem formando moléculas mais complexas e substâncias, que por sua vez puderam diferenciar-se, relacionar-se e se organizar formando a primeira célula, uma organização já bastante complexa que deu origem aos primeiros organismos unicelulares.

Quando descrevemos desta forma, num parágrafo, o que se deu em bilhões de anos, na verdade estamos especificando inúmeros atos de diferenciação, ou seja, estamos distinguindo, átomos, moléculas, substâncias, célula, organismos, no contexto da história biológica. “O ato de designar qualquer ente, objeto, coisa ou unidade, está ligado à realização de um ato de distinção, que separa o designado e o distingue de um fundo” (pág 47). Este ato de distinguir especifica que estamos falando das propriedades desses entes enquanto unidades. E é exatamente com esta compreensão que queremos representar a história biológica mais remota dos seres vivos.

Aqui, para que possamos entender verdadeiramente o percurso dos autores é necessário que paremos um pouco e entendamos o papel da organização e da estrutura na determinação dos seres vivos. Quando falamos de organização de um ser vivo dizemos de como ele está configurado. Portanto, a organização é o determinante de definição dos seres vivos. Por outro lado, quando falamos de estrutura, dizemos de como as partes de um ser vivo interagem para que a sua organização funcione. A estrutura é, assim, o determinante operacional de todo ser vivo.

Mas a compreensão destes dois conceitos ainda não é suficiente para entendermos os seres vivos, para distingui-los. Afinal, os não vivos também podem ser analisados enquanto organização e enquanto estrutura. Neste ponto, então, torna-se fundamental as noções de ontogenia, acoplamento estrutural, clausura operacional, filogenia e deriva natural, uma vez que estes dão novos contornos à definição da fenomenologia biológica dos seres vivos.

A ontogenia é a história das modificações estruturais por que passou um ser, uma unidade, sem que esta perca a sua organização. Ela resulta de interações com o meio em que vive este ser ou da sua dinâmica de funcionamento interno. A ontogenia de um ser é uma deriva de modificações estruturais com invariância da organização. Portanto estão aí presentes a conservação e a adaptação, como veremos mais adiante quando ocuparmo-nos dos conceitos de filogenia e deriva natural. A história ontogenética de um ser não cessa enquanto este ser existir.

O acoplamento estrutural pode ser entendido como um conjunto de mudanças que o meio provoca na estrutura de um determinado organismo e vice-versa, numa relação circular. Ou seja, um organismo é sempre fonte de resposta para o meio onde se encontra. Quando influenciado muda; mudado responde provocando também mudanças no meio que o influenciou. Em outras palavras: ao replicar, o influenciado dá sempre a sua interpretação de como percebeu a mudança ou deformação provocada pelo meio. Estabelece-se, portanto, um diálogo, uma transação, sempre recorrente enquanto permanecer o acoplamento estrutural.

E como lembram os autores “o acoplamento estrutural com o meio e como condição de existência, abrange todas as dimensões das interações celulares e, portanto, também as que têm a ver com outras células” (pág. 88/89). E aqui a afirmação do autor é válida também para todos os multicelulares, uma vez que eles coexistem em estreita relação com as outras células com as quais realizam a sua autopoiese.

A clausura operacional indica que quaisquer que sejam as mudanças fruto do acoplamento estrutural com o meio, provocadas em um ser vivo, elas serão sempre geradas a partir de modificações dentro deste mesmo ser vivo. Não é o meio externo que, de forma direta, determina as mudanças ao ser. Ela é sempre fruto de um conjunto de relações externas e internas do ser, que para tanto, lança mão de sua contabilidade lógica. Em outras palavras, funciona como uma rede fechada de mudanças que lhe é própria e que obedece a sua ontogenia e a sua filogenia, o que consiste na manutenção de certas relações entre os seus componentes, invariantes diante de perturbações (relações) geradas pelo meio.

Essa trajetória é que impulsionou os seres vivos e fez surgir a idéia de reprodução e hereditariedade, e com ela toda a sua diversidade, até chegarmos aos animais, aos hominídeos nossos ancestrais e, finalmente, ao homem, a estrutura mais complexa de que se tem notícia. Para melhor entender como tudo isso ocorreu, recorremos, finalmente, aos conceitos de filogenia e deriva natural.

Todos esses fenômenos que contam os bilhões de anos da história da vida na Terra devem ser entendidos, ao contrário do que possamos pensar num primeiro momento, em termos de uma profunda invariância, por um lado, e por uma mais que lenta variância por outro lado, dentro de um processo contínuo de reprodução das condições de conservação e variação dos seres vivos através dos milênios.

Neste sentido, filogenia pode ser conceituada como uma “sucessão de formas orgânicas geradas seqüencialmente por relações reprodutivas. As mudanças experimentadas ao longo da filogenia constituem a alteração filogenética ou evolutiva” (pág. 117). Daí podermos entender que as mudanças filogenéticas se constituem enquanto contradição da ontogenia e afirmação de novas linhagens de indivíduos que fazem evoluir a fenomenologia biológica, com o aparecimento de novas espécies (novas classes filogênicas).

Por sua vez o conceito de deriva natural diz respeito às mudanças filogenéticas experimentadas na evolução dos seres vivos. Mudanças estruturais que apenas parecem aleatórias e nas quais não há progresso nem otimização do uso do ambiente. O que há é apenas a conservação da adaptação e da autopoiese, num processo em que organismo e ambiente permanecem num contínuo acoplamento estrutural. Para exemplificar essa condição nos servimos de um exemplo oferecido pelos autores, onde eles descrevem a maneira como a coerência interna de um grupo de seres vivos compensa uma mudança importante na temperatura terrestre.

Afirmam, em primeiro lugar, que só os organismos que sejam capazes de viver dentro das novas faixas térmicas poderão manter ininterrupta a sua filogenia. Lembram que a compensação pode dar-se de vários modos: por meio do espessamento da pele, de modificações das taxas metabólicas, grandes migrações geográficas, etc. Esclarecem que o que vemos como adaptação ao frio inclui também o resto do organismo de forma global, já que o espessamento da pele implicará em mudanças correlatas, não apenas na pele e nos músculos, mas também no modo como os animais de um grupo se reconhecem entre si; no tônus muscular durante a marcha, por exemplo.

“Em outras palavras, já que todo sistema autopoiético é uma unidade de múltiplas interdependências, quando uma de suas dimensões é afetada o organismo inteiro experimenta mudanças correlativas, em muitas dimensões ao mesmo tempo. Mas é claro que tais mudanças que nos parecem corresponder a alterações ambientais não são causadas por estas: elas ocorrem na deriva configurada no encontro operacionalmente independente entre organismo e meio (...) Em resumo: a evolução é uma deriva natural, produto da invariância da autopoiese e da adaptação”. (pág.131)

É dentro desta circularidade que os autores querem que estabeleçamos a relação entre a fenomenologia social e a fenomenologia biológica. Por isso afirmam: “não há descontinuidade entre o social, o humano e suas raízes biológicas. O fenômeno do conhecer é um todo integrado e está fundamentado da mesma forma em todos os âmbitos”. (pág. 33)

Quem acompanhou este texto, até agora, pôde perceber que a análise da trajetória dos seres vivos no mundo, a partir da visão de movimento presente em Maturana e Varela, foi feita em termos deterministas, mostrando como a vida, vista dessa forma, se torna compreensível e como os seres vivos surgem dele como algo espontâneo e natural. Mas é necessário que isto não seja percebido em termos de previsibilidade. Só poderíamos falar de previsibilidade se, observando o estado atual de um ser vivo, pudéssemos afirmar com total certeza como este, num estágio subseqüente, se apresentaria; e que tal afirmação pudesse ser observada no momento exato determinado. Mas isso não acontece, pois, nem sempre é possível pensar os seres vivos com esse nível de previsibilidade.

BIOLOGIA DA COGNIÇÃO: FENOMENOLOGIA BIOLÓGICA E SOCIAL, LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO

Referindo-se aos humanos e ao seu sistema nervoso, os autores expressam a riqueza e a vastidão de domínios de interação que este sistema possibilita permitindo a geração de novos fenômenos e novas dimensões de acoplamento estrutural. Foi isso, e não outra coisa, que permitiu o desenvolvimento filogenético que resultou no homo sapiens e, em última instância, na linguagem e na autoconsciência humanas.

“O funcionamento do sistema nervoso é plenamente consistente com sua participação numa unidade autônoma, na qual todo estado de atividade leva a outro estado de atividade nela mesma, dado que o seu modo de operar é circular, ou em clausura operacional. Portanto por sua própria arquitetura, o sistema nervoso não viola, e sim enriquece, esse caráter autônomo do ser vivo (...) daí se segue que todo conhecer é fazer, como correlações sensório-efetoras nos domínios de acoplamento estrutural em que existe o sistema nervoso”. (pág. 185).

Os autores vêem o sistema nervoso da mesma forma como vêem os demais sistemas, uma vez que fazendo parte do organismo ele terá de funcionar contribuindo em cada momento para a sua determinação estrutural, ou seja, para a manutenção da sua estrutura, assim como para os seus resultados de funcionamento: visão, audição, linguagem e tato, por exemplo. Porém, é inegável que ter um sistema nervoso dotado de cefalização confere aos animais outra plasticidade estrutural, uma vez que amplia o domínio dos seus estados possíveis.

A plasticidade do sistema nervoso se explica exatamente pelas redes de relações que compõem equilíbrios dinâmicos que em si, e por si, desencadeiam mudanças estruturais locais e ao mesmo tempo sistêmicas. Lembram, por exemplo, o fato de que a corrente sangüínea, sempre carregada de substancias, as mais diversas, banha os neurônios, abrindo sempre mais e mais possibilidades de influencias do meio.

Neste ponto, os autores levantam um interessante debate para afirmar que quanto ao funcionamento do cérebro, estamos diante de uma cilada que nos coloca sobre um fio de navalha, ou seja, entre o solipsismo e o representacionismo. “Trata-se de uma cilada, porque não permite explicar a adequação ou a comensurabilidade entre o funcionamento do organismo e o seu mundo”. (pág. 151).

Afirmam ainda que, hoje, predomina o representacionismo, mas noutras épocas não foi assim, prevalecendo a visão do subjetivismo e do solipsismo. Ainda retomando a questão da plasticidade estrutural do sistema nervoso, nos humanos, os autores nos fazem julgar que foi a condição de ser ao mesmo tempo determinante e determinado que tornou possível ao homem desenvolver comportamentos instintivos (inatos) e aprendidos (natos), mesmo que estes comportamentos sejam, em geral, indistinguíveis em sua natureza e realização, pois a distinção só será possível na medida em que tivermos acesso a história das estruturas que a tornaram possíveis.

Neste sentido tudo que disseram aponta para “a compreensão da aprendizagem como expressão do acoplamento estrutural, que manterá sempre uma compatibilidade entre o funcionamento do organismo e o meio em que ele ocorre” (pág.193). Por fim, ainda sobre esse assunto, nos lembram que a visão representacionista considera que a aprendizagem e a memória, por exemplo, são fenômenos de comportamento que se dão pela captação ou recebimento de algo vindo do meio, o que implica supor que o cérebro trabalha com representações. Isso, na visão desenvolvida pelos autores, obscurece e complica o entendimento dos processos cognitivos.

Apesar de não tratarem em A Árvore do Conhecimento da explicação dos processos cognitivos, deixam-nos uma definição de ato cognitivo, como sendo toda interação, toda conduta de um organismo, que possa ser observada, avaliada por um observador. Nessa linha, o fato de viver permanentemente em acoplamento estrutural como ser vivo corresponde ao que vem afirmando os autores desde o início: conhecemos no âmbito do existir. Daí o aforismo: “viver é conhecer (viver é ação efetiva no existir como ser vivo)” (pág. 194)

Articulando a sua fenomenologia biológica com a fenomenologia social, Maturana e Varela, na perspectiva da comunicação, servem-se, inicialmente, de exemplos do reino animal para demonstrar a sociabilidade que existe entre as aves, entre os insetos e entre os mamíferos. Descrevem o fenômeno de trofolaxe, que determina a organização social entre as formigas e as abelhas, processo que define o lugar e o papel de cada uma nas suas sociedades. Na base de toda essa sociabilidade está a forma como eles se comunicam, determinados pelas suas filogenias e, mais que isso, pelas suas ontogenias.

“Essa fenomenologia se baseia no fato de que os organismos participantes satisfazem suas ontogenias individuais principalmente por meio de seus acoplamentos mútuos, na rede de interações recíprocas que formam ao constituir as unidades de terceira ordem”. (pág.214)

Desse acúmulo, decorre a necessidade de desenvolvermos mais alguns conceitos importantes para o aprofundamento do nosso entendimento. Eles dizem respeito a fenômenos sociais, comunicação e conduta cultural, todos com desdobramentos claros na diferenciação entre os animais em geral e o homem.

A comunicação denota a coordenação comportamental que observamos nos comportamentos comunicativos, a trofolaxe, por exemplo, que ocorre num acoplamento social. Como já dissemos, esses comportamentos são determinados pela ontogenia de cada ser e envolvem a imitação. Daí podermos evoluir para o entendimento de conduta cultural, como a estabilidade transgeracional de comportamentos adquiridos na dinâmica comunicativa de um meio social. Caso isso não acontecesse, os comportamentos seriam sempre os inventados em cada geração, o que de certa forma contrariaria quase tudo o que vimos discutindo até agora.

Recorrendo a Pinto (1979) para entendermos melhor a questão da cultura, em termos da abordagem pelo prisma da dialética, vale dizer do movimento, temos que o início da cultura não é datado, mas coincide com o processo de hominização.

“A criação da cultura e a criação do homem são na verdade duas faces de um só e mesmo processo, que passa de principalmente orgânico na primeira fase a principalmente social na segunda, sem, contudo em qualquer momento deixarem de estar presentes os dois aspectos e de se condicionarem reciprocamente (Pinto, 1979, pág.122)”.

A diferenciação dos seres humanos em relação aos outros seres vivos e, especialmente, em relação aos seus ancestrais, nos obriga a falarmos de descrição semântica, domínio lingüístico, linguagem e consciência (reflexão e autoconsciência). Essa discussão nos remete de volta a uma revisão sobre o papel da contabilidade lógica do sistema nervoso e ao fio de navalha sobre o qual caminhamos quando precisamos fazer a diferenciação entre o modo de operar de um organismo e a descrição dos seus comportamentos.

Utilizando os autores, dizemos que toda vez que possamos, enquanto observadores, significar (descrever) os comportamentos recorrentes de um ou mais indivíduos em acoplamento social, no qual se envolvam reciprocamente na realização de suas respectivas autopoieses, estaremos diante de uma descrição semântica. Neste caso, podemos dizer também que estamos diante de uma conduta comunicativa de natureza lingüística, já que podemos distingui-la enquanto construção semântica.

Podemos dizer ainda que diante de todos os comportamentos lingüísticos de um ser, falamos do domínio lingüístico deste ser; que quando operamos o nosso domínio lingüístico de forma consciente e usando a reflexão produzimos linguagem. A linguagem é a nossa “trofolaxe” social; pena que “Não conhecemos com precisão, e talvez não conheçamos nunca, os detalhes da história das transformações estruturais dos hominídeos. Infelizmente, a vida social e lingüística não deixa fósseis e não é possível reconstitui-la”. (pág. 240).

Mesmo não sendo possível esta reconstituição, os autores se esforçam em fazer uma cuidadosa e detalhada descrição, inclusive anatomo-fisiológica, do quanto o surgimento da linguagem interferiu na evolução dos seres humanos, revolucionando as suas relações sociais em todos os âmbitos, expandindo ainda mais os limites do seu sistema nervoso e, conseqüentemente, dos seus cérebros. Foi através da expansão desses limites, traduzido em acoplamentos estruturais lingüísticos e, portanto, sociais, que surgiu a mente e a consciência do homem. No dizer dos autores:

“As características únicas da vida social humana e seu intenso acoplamento lingüístico geraram um fenômeno novo, ao mesmo tempo tão próximo e tão distante da nossa própria experiência: a mente e a consciência. (...) Por sermos humanos, somos inseparáveis da trama de acoplamentos estruturais tecida por nossa permanente ‘trofolaxe’ lingüística. A linguagem não foi inventada por um indivíduo sozinho na apreensão de um mundo externo. Portanto, ela não pode ser usada como ferramenta para a revelação desse mundo. Ao contrário, é dentro da própria linguagem que o ato de conhecer, na coordenação comportamental que é a linguagem, faz surgir um mundo. Percebemo-nos num mútuo acoplamento lingüístico, não porque a linguagem nos permita dizer o que somos, mais porque somos na linguagem, num contínuo ser nos mundos lingüísticos e semânticos que geramos com os outros. ” (pág. 245/257)

Maturana e Varela, ainda acerca do nosso desconhecimento do movimento da realidade, acentuam a necessidade de um posicionamento ético frente ao que julgamos conhecer. Nesse posicionamento elegem o diálogo como pano fundo, ao afirmarem que:

“Todo ato humano ocorre na linguagem. Toda ação na linguagem produz o mundo que se cria com os outros, no ato de convivência que dá origem ao humano, por isso toda ação humana tem sentido ético. Essa ligação do humano ao humano é, em última instância, o fundamento de toda ética como reflexão sobre a legitimidade da presença do outro”.

Essa discussão que articula a questão da consciência/autoconsciência, a linguagem, a alteridade e a ética e, em conseqüência, a cultura e o diálogo, é fundamental e parece nos revelar uma contribuição interessante de Maturana e Varela para abordarmos a problemática da educação popular. Pode também estar nos indicando uma forte interseção com Freire, já que muito do que viemos discutindo neste texto, especialmente o que se refere ao movimento e a dialética, encontra-se na sua epistemologia. Senão, vejamos o que nos diz o próprio Freire nas duas passagens a seguir:

“Consciência e mundo não podem ser entendidos separadamente, dicotomizadamente, mas em suas relações contraditórias. Nem a consciência é a fazedora arbitrária do mundo, da objetividade, nem dele puro reflexo” (Freire 1997, pág. 12)

“O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na história”. (Freire, 1996, pág. 136).

FECHANDO (E REABRINDO) O DIÁLOGO SOBRE MOVIMENTO, REALIDADE E AUTOPOIESE, EM MATURANA E VARELA

Diante de tudo o que expomos, nos parece claro que em Maturana e Varela, assim como nos demais autores que nos auxiliaram no decorrer deste texto – em Heráclito especialmente – vida e realidade estão, as duas, irremediavelmente juntas num processo de conhecimento contínuo.

Assim, a história que descortina a realidade da vida biológica e social na Terra, não é outra senão a síntese de uma configuração dinâmica de fenômenos que são biológicos e sociais a um só tempo. A vida é fenômeno em movimento. E neste ponto, fenomenologia biológica e fenomenologia social compõem uma unidade dialética. Somos socialmente biológicos e biologicamente sociais. A separação quem faz é a nossa mente representacionista que separa o ser (o homem) do mundo (da natureza), o conhecer do conhecedor.

Compreender o movimento da vida dos seres vivos e desvendar a ontogenia e a filogenia dos seres humanos em busca da formação da sua autoconsciência, que se expressa nos atos cognitivos, é compreender como se revela a essência dos seres humanos e sua criação, vencendo, a cada momento, a visão de aparência e de certeza que resulta do representacionismo e do positivismo que dominam, contraditoriamente, a nossa consciência do mundo.

Neste aspecto, o estudo do movimento passa pelo estudo do modo de produção social, uma vez que não existe produção e reprodução social desvinculada da produção e da reprodução biológica. Podemos dizer que a fenomenologia biológica encontra-se subsumida na fenomenologia social e vice-versa. Elas compõem a totalidade do ser humano, que está na relação biologia x sociedade. O exercício de Maturana e Varela, na obra que examinamos, parece ter sido o de tentar compreender como essa totalidade se expressa na vida humana.

Há uma relação de determinação no movimento da autopoiese. Assim, a história biológica e social dos seres humanos é apresentada o tempo todo como uma tensão dialética entre o ser e o seu meio. A realidade social, assim como a realidade biológica, é essencialmente contradição, síntese, antítese, nova síntese e assim por diante. Enfim, movimento, contradição, mudança e unidade constante é o que há na realidade biológica e na realidade social. Portanto, não podemos afastar-nos desta unidade enquanto materialidade e consciência, o que nos vale dizer, enquanto conhecimento.

REFERÊNCIAS

CORDON, J.M.N. & MARTINEZ, T.C. – História da Filosofia. Os filósofos – Os textos. V.1. Lisboa/Rio Edições 70, 1983;

FREIRE, P. – Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 28ª edição. São Paulo, Paz e Terra, 1996;

FREIRE, P. – Política e educação. 3ª edição. São Paulo, Cortez, 1997 (Coleção questões da nossa época; v, 23)

HEIDEGGER, M. – Being and Time. Nova York: Harper & Row, 1962;

KONDER, L. – O que é Dialética. São Paulo, Brasiliense, 1992;

MARIOTTI, H. – Autopoiese, Cultura e Sociedade. Pluriversu – Complexidade, Política e Cultura. Texto datado de 1999 e colhido do site: www.geocities.com/pluriversu - pesquisa feita em Março/2004;

MARIOTTI, H. – As Paixões do Ego: Complexidade, Política e Solidariedade. São Paulo, Editora Pala Athenas, 2000;

MARX, K. – Manuscritos económicos-filosóficos e outros textos escolhidos. Os Pensadores. Karl Marx; seleção de textos de José Arthur Giannotti; tradução de José Carlos Bruni ... (et al.). – 4. ed. – São Paulo; Nova Cultural, 1987;

MATURANA, H.R. & VARELA, F.J – A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. Tradução; Humberto Mariotti e Lia Diskin. São Paulo, Pala Athenas, 2001;

MELO NETO, J.F. – HERÁCLITO: um diálogo com o movimento. João Pessoa, Editora Universitária, 1996;

PINTO, A.V. – Ciência e Existência – problemas filosóficos da pesquisa científica. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1979.


[1] Nos referimos especificamente a obra MATURANA, H.R. & VARELA, F.J – A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. Tradução; Humberto Mariotti e Lia Diskin. São Paulo, Pala Athenas, 2001. Ambos os seus autores são biólogos e orientaram os seus interesses de pesquisa e construção de conhecimento para a compreensão da vida dos seres vivos na terra e o desenvolvimento e funcionamento do sistema nervoso. Suas pesquisas além de se estenderem ao âmbito social e humano, deram um grande contributo para o desenvolvimento da neurociência.
[2] Professor Assistente da Universidade Federal da Paraíba. Médico Sanitarista (UFPB); Mestre em Ciências Sociais (MCS/CCHLA/UFPB) e doutorando em Educação Popular (PPGE/CE/UFPB);
[3] Trata-se de uma obra polêmica, complexa, reveladora, instigante, perturbadora e, sobretudo, transgressora. Ela merece todos esses adjetivos, justamente porque, entre outras coisas, abala os alicerces da ciência moderna e o seu edifício de certezas fundado no representacionismo e no cartesianismo. Mas, dialeticamente, faz isso sem descartar ou abrir mão dessas duas atitudes metodológicas.
[4] Conferir em HEIDEGGER, M. – Being and Time. Nova York: Harper & Row, 1962.

Nenhum comentário:

Postar um comentário