terça-feira, 31 de outubro de 2006

SAÚDE-DOENÇA: conhecimento, poder, cultura, ciência e história

Lindemberg Medeiros de Araújo[1]

Os sistemas filosóficos com os quais se tentou, desde a antiguidade até os nossos dias, explicar o mundo, suas circunstancias e eventos fundamentais, influem decididamente na produção social e no direcionamento da ciência e do conhecimento. Isso, evidentemente, inclui a abordagem do processo saúde-doença, da medicina e da prática médica. Desse modo, a pesquisa e a consideração da história é um importante respaldo para a afirmação de que saúde-doença, medicina e prática médica sempre foram determinadas, de um lado, pela evolução do conhecimento e de outro pela realidade social, econômica e política – e suas relações com o poder – em cada contexto histórico. Partindo desta constatação e considerando os registros que nos chegaram da antiguidade, pode-se inferir que a medicina, e sua prática, já naquela época formavam parte de um intenso debate em cujo centro se encontrava uma produção derivada da observação, da experiência, da perícia, do raciocínio e, porque não dizer, da cultura e da inteligência humana[2].

A partir dos próximos parágrafos, será feita uma abordagem histórica da evolução dos conceitos de saúde-doença nos diversos contextos. O que se pretende é acentuar as idéias predominantes e as suas conseqüências práticas para cada período, com o cuidado de não apagá-las ou confiná-las àquele período. Isso é importante na medida em que, mesmo depois de uma história que remonta milênios, pode-se sentir, ainda nos dias de hoje, a presença, por vezes marcante, de idéias, hábitos, costumes ou mesmo preceitos que dominaram numa época passada e que em virtude da conservação de fortes tradições culturais, subsistiram e continuaram no imaginário e nas práticas populares ou mesmo científicas. Por isso, não é raro alusões ao clima, à religiosidade, aos astros e a outras forças do homem e da natureza para explicar e justificar crenças e atitudes humanas diante de eventos relacionados à saúde-doença.

Saúde-doença nos povos primitivos

A historiografia médico-antropológica que retrata os povos primitivos mostra que os seus conceitos de saúde e de doença estavam perpassados pelo sentimento mágico-religioso. E como não poderia deixar de ser, as idéias que sustentavam a medicina da época estavam intimamente relacionadas às crenças religiosas que possuíam estes povos acerca da conformação do mundo. A relação que mantinham com o mágico e com o religioso os colocava numa espécie de camisa de força quando se tratava de explicar eventos ligados a morbi-mortalidade das populações. O medo do desconhecido e da possibilidade de violação de uma crença ou regra cultural religiosa gerava superstições, maus presságios; um acidente ou qualquer coisa externa que atingisse o homem, era facilmente tomado como algo desencadeado pela influencia de forças sobrenaturais, pelo lançamento de maus agouros, ou mesmo como justificadores diretos de doenças em indivíduos ou comunidades inteiras.

Os egípcios consideravam a saúde como o estado natural do ser humano. A doença podia ser classificada em dois grupos: a) aquelas doenças cujos sinais e sintomas eram evidentes e para as quais não se apelava para explicações sobrenaturais ou mágico-religiosas – os traumatismos, feridas, fraturas e queimaduras podem ser arrolados neste grupo; e, b) as doenças cujas causas eram desconhecidas ou não perceptíveis, as quais abriam espaço para as explicações do tipo mágico-religiosa. Como havia uma relação de dependência considerável com o rio Nilo, a tradição egípcia relacionava estágios do rio com saúde e enfermidade. Os momentos de subida do nível das águas significavam abundantes colheitas e saúde, enquanto que os momentos de baixos níveis acarretavam fome e epidemias. Acreditavam que alimentos bem ou mal combinados podiam manter a saúde ou causar doenças; faziam uso freqüente de banhos e abluções e eram ainda conhecidos como povos extremamente higiênicos. (PUERTO SARMIENTO, 1997)

Os povos hindus e chineses, por seu turno, concebiam saúde e doença dentro de uma dicotomia que ora resultava em equilíbrio, ora em desequilíbrio entre os elementos e humores que constituíam o organismo humano. A explicação para esse movimento oscilatório estaria na influencia positiva ou negativa que os astros, animais, insetos e o próprio clima, causavam à energia vital que animava os seres humanos. Mas diferente de outros povos, eles acreditavam que o homem possuía um papel ativo nas causas de adoecimento e mesmo que estas fossem naturalizadas, não possuíam o caráter mágico-religioso que imperava em outras concepções. Aprofundaram-se na concepção de que o corpo seria um complexo de energia vital susceptível de momentos de equilíbrio e desequilíbrio e desenvolveram um extenso e variado conjunto de técnicas e práticas para a manutenção ou restabelecimento do equilíbrio entre a energia vital e os humores orgânicos. (BARATA, 1985, p. 13-14).

O saber anátomo-fisiológico da china antiga era parametrizado pela cosmologia e presidido pelo número 5. Fazia a correspondência entre cinco elementos básicos da natureza (terra, ar, água, madeira e metal) com cinco órgãos principais do corpo (coração, pulmão, rim, fígado e baço) e cinco órgãos secundários (intestino delgado, intestino grosso, uretra, vesícula biliar e estômago) que por sua vez estavam em correspondência com os planetas e estações do ano. O desequilíbrio entre o Yin (energia positiva) e o Yang (energia negativa) levava a desordem entre os cinco elementos e a enfermidade. A causa última dessa desordem que resultava nas enfermidades poderia estar nas mudanças excessivas do clima, da dieta, das relações afetivas, da umidade, do frio excessivo, dos venenos e também dos espíritos malignos. Para o diagnóstico empregavam os cinco sentidos, mas, possuía importância especial o pulso. Como métodos terapêuticos se destacavam a acupuntura e a “moxabustão”. (PUERTO SARMIENTO, op.cit.)

A Saúde-doença para a antiguidade grega

Considerada como o berço da mais tradicional e bem sucedida expressão da medicina da antiguidade, a Grécia desenvolveu uma compreensão do processo saúde-doença que tem a ver com a experiência oriental hindu e chinesa, pois trabalhava com conceitos de isonomia e disnomia para indicar harmonia ou desarmonia em relação aos quatro elementos que, na sua visão, entravam na composição do corpo humano: terra, ar, água e fogo. Na visão grega, fatores externos agiriam no organismo causando desequilíbrios entre esses componentes, expressando doenças. Barata (1985, op. cit.), faz referencia a uma passagem atribuída a Platão que bem retrata a maneira como os gregos encaravam a doença:

“... a maneira pela qual elas (as doenças) se formam pode ser clara a qualquer um. O corpo é composto da mistura de quatro elementos: terra, fogo, água e ar. A abundância ou falta desses elementos, fora do natural; a mudança de lugar, fazendo com que eles saiam de sua posição natural para outra que não lhes seja bem adaptada; ou o fato de que um deles é forçado a receber uma quantidade que não é própria para ele, mais conveniente para outra espécie; todos esses fatores e outros similares são as causas que produzem distúrbios e moléstias”. (PLATÃO, apud BARATA, 1985, p. 15)

Jaeger (1995), na obra PAIDÉIA: a formação do homem grego – comenta que foi a tradição hipocrática que enriqueceu e deu o peso definitivo para que fundamentos gregos da medicina estejam válidos ainda hoje e informem a prática clinica e a cuidadosa observação da realidade circundante das pessoas que necessitam de cuidados para a sua saúde. Basta que se observe a riqueza de detalhes de um trecho da introdução do escrito de Hipócrates “Dos Ventos, Águas e Regiões” onde é descrito o bom procedimento a quem se aventura pela arte da medicina:

Quem quiser aprender bem a arte de médico deve proceder assim: em primeiro lugar há de ter presentes as estações do ano e os seus efeitos, pois nem todas são iguais mas diferem radicalmente quanto à sua essência específica e quanto às suas mudanças. Deve ainda observar os ventos quentes e frios, começando pelos que são comuns a todos os homens e continuando pelos característicos de cada região. Deve ter presentes também os diversos gêneros de águas. Estas se distinguem não só pela densidade e pelo sabor, mas ainda por suas virtudes. Quando um médico (que é considerado, como era habitual naquela época, médico ambulante) chegar a uma cidade desconhecida para ele, deve determinar, antes de mais, a posição que ela ocupa quanto às várias correntes de ar e quanto ao curso do Sol... assim como anotar o que se refere às águas... e à qualidade do solo... Se conhecer o que diz respeito à mudança das estações e do clima, e o nascimento e o ocaso dos astros... conhecerá antecipadamente a qualidade do ano... Pode ser que alguém julgue isto demasiadamente orientado para a ciência, mas quem tal pensar pode convencer-se, se alguma coisa for capaz de aprender, que a Astronomia pode contribuir essencialmente para a Medicina, pois a mudança nas doenças do homem está relacionada com a mudança do clima. (JAEGER,1995, p. 944-45)

O trecho atribuído a Hipócrates, permite notar que a medicina hipocrática incorpora uma variedade de raciocínios que traduzem a observação e o senso prático presentes nos conhecimentos e na formação do médico grego. Há um esforço da inteligência grega em articular os eventos da natureza com sinais e sintomas que se manifestam no organismo humano. Com esta leitura, as enfermidades orgânicas ganham uma dimensão que ultrapassa o próprio corpo biológico. As doenças e afecções que se poderia diagnosticar nas pessoas e nas coletividades passam a ter um outro sentido, uma outra dimensão; passam a ser perscrutadas nas interferências positivas ou negativas, para a saúde, dos hábitos, costumes e atitudes cotidianas, em função de problemas com o ambiente natural e suas relações.

Ainda prosseguindo na visão grega e na correspondência que faziam entre saúde-doença e o equilíbrio/desequilíbrio com o ambiente natural, podemos ver como havia toda uma preocupação dos médicos da época com a regulamentação de uma dieta e um conjunto de exercícios que fossem adequados ao clima e às estações do ano, numa espécie de política medicinal de equilíbrio, que envolvia a prescrição de muitos alimentos sólidos e poucos líquidos nas estações frias e poucos alimentos sólidos e muitos líquidos nas estações quentes, com o intuito de se equilibrar o organismo com as condições de umidade e secura que predominam em cada uma das estações. (JAEGER, 1995, p. 978-79).

Nesta perspectiva, o médico é, antes de tudo, alguém dotado de grande sensibilidade e inteligência prática para perceber a harmonia ou desarmonia homem/natureza e quando isso significa realmente ruptura de uma relação de isonomia. A medicina grega, como afirma Gonçalves (2003):

“se constitui naquela ciência da prática cujo saber enfrenta o confronto entre necessidades e acaso. Em outras palavras, ela precisa se aproximar da ordem necessária das coisas do movimento, que incorporam também o casual, o aleatório, o imponderável. Assim, para saber como intervir, o médico precisa contar com a técnica, imaginação engenhosa e iniciativa, que, entre os gregos dizem respeito à deusa Métis, ou às qualidades desta deusa: a inteligência prática”. (GONÇALVES[3], 2003, p. 47)

A Idade Média: a estagnação do conceito de saúde-doença

A concepção grega de saúde-doença perdurou durante vários séculos, até paulatinamente ir sendo deixada de lado em favor de uma visão teológico-cristã que se refletiu, inclusive, na prática médica que ficou a cargo da igreja e dos sacerdotes, confundindo-se em muitos momentos com as práticas religiosas. A Idade média foi, assim como bem está estampada na historiografia[4], preponderantemente uma idade das trevas; da violência das cruzadas e das intermináveis guerras religiosas, da asfixia da criatividade e do conhecimento. Foi também, e consequentemente, uma era de grandes epidemias e pestes que dizimaram a maioria da população, por pouco não varrendo o homem da face da terra.

Para se ter uma visão mais clara da estagnação e do retrocesso que significou este período da humanidade, para o conhecimento, basta que se veja que por volta dos séculos XIV e XV, ou seja, já no final da Idade Média e ainda sob o feudalismo, a causa das doenças continuava sendo atribuída à mesma variabilidade dos humores corporais que, segundo as crenças disseminadas pela igreja católica, atingia principalmente as pessoas que estavam “em pecado”. Em sendo assim, a fé e a religiosidade se constituíam como traços marcantes nas formulações de tratamento e cura; e ao contrário da veneração pela saúde corporal, típica do classicismo greco-romano com suas academias e dietas, o tratamento das doenças fora transferido para os monastérios onde se pregava o aperfeiçoamento do espírito em detrimento do descuido com o corpo.

Entre os cristãos a doença era explorada como uma forma de purificação da alma e expiação dos pecados e tratada pelo arrependimento, pela mortificação e pela penitencia; pelas orações e súplicas por milagres ou mesmo pela compra de indulgências às autoridades religiosas. E como se vivia um Estado cristão no ocidente, os pagãos, considerados fora da lei, eram perseguidos, presos, acorrentados e muitas vezes submetidos a exorcismos, visto que se acreditava que, por não serem cristãos, eram possuídos por espíritos imundos ou praticavam e viviam sob o efeito de bruxarias. Como se pode notar, um verdadeiro retrocesso do conhecimento, com implicações nas práticas em saúde, caracterizou a medicina ocidental européia, neste período.

Uma outra variável além da político-ideológica contribuía ainda mais para a situação de indigência em relação à saúde-doença: os grandes deslocamentos de pessoas, provocados de um lado pelas cruzadas e por outro pelas aglomerações nas cidades que nasciam sem a mínima estrutura sanitária e sem planejamento, o que fazia aumentar ainda mais o risco e a ocorrência de grandes epidemias. Essa situação, inclusive, foi uma das propulsoras para que outras teorias sobre a causação das doenças aparecessem ou fossem retomadas. Continuava-se acreditando no poder dos astros e na influência deles na causação das doenças, porém, explicações que culpabilizavam os leprosos ou os judeus pelo envenenamento de mananciais ou de utensílios e objetos, assim como a ação de endemoniados, eram muito mais simples e úteis para aquela situação.

A teoria do contágio, já encontrada no velho testamento, foi uma das teorias que foi retomada especialmente pela influência dos conventos e monastérios. É famosa uma passagem citada em Barata (1985 op. cit.) recolhida dos escritos de um monge franciscano italiano, que se refere à epidemia de peste ocorrida em 1374, naquele país:

“Devido a uma infecção do hálito que se espalhou em torno deles enquanto falavam, um infectava o outro... e não só faziam morrer que quer que falasse com eles como, também, quem quer que comprasse, tocasse ou tirasse alguma coisa que lhes pertencesse.” (MICHELE PIAZZA, monge franciscano, 1374)


A modernidade traz de volta a discussão sobre o conceito de saúde-doença

A Idade Moderna que assistiu a longa transição do feudalismo para o capitalismo, foi também uma época de renascimento, onde o mundo experimentou grandes avanços em todos os campos, notadamente nas ciências que deram um grande salto qualitativo. E mesmo que continuasse e até evoluísse a teoria do contágio – que sustentava e reforçava a doença como algo externo ao homem, colocando-o na condição de um quase impotente receptáculo de doenças e agravos – a reforma protestante, o questionamento da verdade absoluta representada pela Igreja Católica e a queda paulatina da sua forte influência nas cortes da Europa, aos poucos foi deslocando o eixo das discussões sobre causalidade, fazendo com que a discussão assumisse posições mais científicas.

Nestas condições, a medicina volta ao laicismo e são retomados os experimentos clínicos, antes proscritos pela igreja. Os relatos desses experimentos passam assim a ter grande influência e credibilidade, mesmo que continuassem hegemônicas as idéias do contágio, que até evoluiria para a teoria dos miasmas. A teoria miasmática afirmava que a origem das doenças situava-se na má qualidade do ar, proveniente das emanações oriundas da decomposição de animais e plantas. Esta teoria, como a do contágio, que em si já denotava uma determinada linha de “raciocínio epidemiológico” que dominou o pensamento médico até metade do século XIX, pode ser caracterizada pela seguinte citação, também extraída de Barata (1985, p. 18):

“Há diferentes constituições em diferentes épocas. Elas não se originam nem do calor, nem do frio, nem da umidade, nem da secura, elas dependem de certas misteriosas e inexplicáveis alterações nas entranhas da terra. Pelos seus eflúvios, a atmosfera torna-se contaminada e os organismos dos homens são predispostos e determinados”. (SYDEHAM)

Mas o empirismo, baseado na observação e na explicação racional para os fenômenos naturais, inaugurara uma era de descobertas científicas em todos os campos. Especificamente na saúde, os estudos se voltaram para o desenvolvimento da clínica e das teorias acerca da causalidade das doenças. Um conjunto de estudos que merece destaque é o desenvolvido por Bernardino Ramazzini, que já por volta de 1700 fizera publicar uma obra onde relacionava as doenças dos agricultores, operários e artesãos às suas profissões. Nos seus estudos baseados na observação chegou a descrever os padecimentos relacionados a cinqüenta e quatro ocupações distintas. As suas conjecturas normalmente levavam em conta o contato laboral com substâncias manipuladas, odores, poeiras e emanações tóxicas e irritantes para o organismo; mas, de outra parte, também fazia referência à violência do trabalho sobre o corpo, às posições forçadas e inadequadas que assumidas durante a jornada laboral, aos poucos iam adoecendo e produzindo graves enfermidades nos trabalhadores[5]. A essa altura, já por volta do século XVIII, evoluíam os estudos sobre anatomia, fisiologia e patologia informados por experimentos precursores que já datavam de séculos anteriores[6]. Evoluía a linguagem dos sinais e sintomas e a relação das doenças com órgãos do corpo, estudos que deram base empírica para os avanços fundamentais da medicina, nos séculos seguintes.

No plano político-ideológico, esta foi também a era das grandes revoluções, como a revolução francesa que ergueu os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade e da revolução industrial inglesa que organizou o trabalho fabril, inicialmente baseado nas indústrias têxteis, mas que logo depois se diversificou e se alastrou por toda a Europa para finalmente chegar às Américas; que para seguir os passos do que acontecia no velho continente, tiveram que enfrentar movimentos de independência que aos poucos se alinharam, não sem traumas, ao contexto das nações modernas que consolidaram o estado liberal, dando início a Idade Contemporânea. Estados Unidos primeiro e o Brasil cinqüenta anos depois, são os exemplos mais importantes na América do Norte e América do Sul, dessa expansão política e ideológica; até mesmo por suas grandes dimensões geográficas e populacionais.

A Idade contemporânea: causação social, causação biológica, unicausalidade, multicausalidade e determinação social do processo saúde-doença.

Considerando-se os conceitos de saúde-doença da época contemporânea, ou seja, dos últimos três séculos, pode-se dizer que foram vividas, neste período histórico, profundas e complexas disputas político-ideológicas. Inicialmente, entre o que podemos chamar dos socialistas utópicos[7] de um lado e dos liberais conservadores do outro, em pleno alvorecer do século XIX. Os socialistas utópicos na verdade desejavam reformar o capitalismo nascente na Europa, mais precisamente na Inglaterra, e tiveram papel importante junto aos movimentos que faziam oposição aos condutores da revolução industrial inglesa. Mas, o grupo mais efetivo contra os capitalistas foram mesmo os socialistas científicos, cujos mais legítimos representantes foram Karl Marx e Fredrich Engels, que com a sua teoria sócio-econômica da história, representada pelo materialismo histórico, produziram uma filosofia e uma sociologia com uma força explicativa sem precedentes na história contemporânea.

Foi inspirada na filosofia marxiana e na realidade concreta de vida e trabalho do operariado europeu que nasceu a teoria da causação social do processo saúde-doença; teoria que questionava os supostos avanços da economia liberal resultante da revolução industrial em marcha. Acusavam o novo sistema produtivo de explorar e ceifar vidas e de levar à exaustão homens, mulheres e até crianças sem a necessária retribuição econômica e social[8], além de tolherem a liberdade e a autonomia humanas.

Os liberais conservadores, por seu lado, defendiam o caráter biológico do processo saúde-doença, armados que estavam dos estudos de Louis Pasteur sobre a descoberta da existência de microorganismos com capacidade para se reproduzirem e provocarem doenças, uma verdadeira revolução bacteriológica no conhecimento da biologia, que vinha dar materialidade e comprovação empírica às epidemias de então e de épocas passadas. Munidos de tal comprovação científica trabalhavam a idéia generalizadora de que existiria para cada doença um microorganismo a ser combatido por vacinas e medicamentos. Estava-se na verdade diante de uma grande batalha fundada sobre dois conceitos distintos de causalidade.

A partir da leitura de Rosen (1983) e Barata (1985), é possível ilustrar o presente texto com alguns posicionamentos de dois importantes defensores da teoria da causação social que, mesmo contra-hegemônicos, deram base para as lutas que ainda hoje, na contemporaneidade, são travadas sobre a questão.

“A ciência médica é intrínseca e essencialmente uma ciência social; enquanto isso não for reconhecido na prática, não seremos capazes de desfrutar de seus benefícios e teremos que nos satisfazer com um vazio e uma mistificação.” (NEUMANN, 1847, apud ROSEN, 1983, p. 51)

“Se a doença é uma expressão da vida individual sob determinadas condições desfavoráveis, a epidemia deve ser indicativa de distúrbio, em maior escala da vida das massas (...) As epidemias não apontarão sempre para as deficiências da sociedade? Pode-se apontar como causas as condições atmosféricas, as mudanças cósmicas gerais e coisas parecidas mas, em si e por si, estes problemas nunca causam epidemias. Só podem produzi-las onde, devido às condições sociais de pobreza, o povo viveu durante muito tempo em uma situação anormal.” (VIRCHOW, 1848, apud BARATA, 1985, p. 19)

O século XX veio trazer ao campo da saúde uma outra disputa político-ideológica, só que agora não mais em termos da unicausalidade, mas da multicausalidade. Como no século anterior, duas posições antagônicas: uma centrada no ambiente, tido como origem de todas as doenças e outra centrada na própria sociedade e na sua organização social, política, econômica e cultural como responsável pelo processo saúde-doença. Os defensores da primeira visão inicialmente partiam de um modelo onde a saúde representava um estado de equilíbrio entre fatores diversos e múltiplos e a doença um estado de desequilíbrio a partir de um, ou mais de um deles; uma visão ecológica multifatorial que em determinado momento chegava até a incorporar o social como um dos fatores da causação. Os defensores da visão fundada na determinação social do processo saúde-doença, por outro lado, centravam a sua posição nas condições de vida e trabalho das pessoas, uma concepção também claramente multicausal que rejeitava a utilização de fatores puramente biológicos, para assumir que a determinação social poderia ser expressa na dialética relação de determinantes e condicionantes da vida social que interferem diretamente na forma de viver, adoecer, morrer das pessoas.

No modelo tido como biologicista, eram reconhecidos três grupos de fatores: os ligados a um agente agressor, normalmente um microorganismo; os ligados ao hospedeiro, ou seja, às condições orgânicas internas de cada indivíduo e os ligados ao meio-ambiente externo. No caso esses grupos de fatores teriam o mesmo potencial para provocar doença e morte no homem. A saída contra o adoecimento estaria no conhecimento e observância de medidas preventivas, normalmente de cunho individual, que manteriam o equilíbrio entre os fatores. Este modelo no decorrer do tempo sofreu uma alteração com a introdução de um quarto grupo de fatores, os psíquico-sociais, conseqüência do movimento da medicina integral norte-americana que passava a definir o homem como um ser bio-psico-social[9], sendo que nesta visão o social era definido como um atributo do homem e não da existência humana; uma redução ideológica que escamoteava o social como elemento de determinação. (BARATA, 1985, op. cit.)

A multicausalidade fundada no ambiente biológico se exprimiria ainda por mais uma evolução desse modelo que admitia a existência de uma rede de causalidade[10], onde nem todas as causas precisavam ser conhecidas; bastava a atuação de medidas preventivas sobre “elos” visíveis da cadeia para se evitar a doença. Para os defensores da teoria da causação social, isso representava mais uma manobra para escamotear o social como determinante, uma vez que as causas não “visíveis” seriam exatamente as causas que encontravam explicação na sociedade e suas organizações.

Finalmente, ainda um último refinamento dessa concepção de saúde-doença pode ser representado pelo modelo ecológico, onde as inter-relações entre os diversos fatores são apresentadas na forma de um sistema triangular fechado, com um feed-back regulador que controlaria a atividade e a sobrevivência de agentes e hospedeiros através do ambiente. Nesta inter-relação os diversos fatores se alterariam mutuamente provocando desequilíbrios (doença) e reequilíbrios (saúde). Os desequilíbrios desse sistema permitiriam a evolução do processo até a cura, óbito ou outros estados intermediários. O modelo da História Natural da Doença[11] era a representação mais típica dessa visão que destacava a saúde-doença como um processo dinâmico condicionado pela inter-relação entre fatores.

A década de 70 veio trazendo concepções mais globalizantes sobre a questão da saúde, principalmente a partir da divulgação do Relatório Lalonde, retratando as experiências canadenses no campo da saúde. O relatório procurava articular quatro dimensões explicativas para o processo saúde-doença: biologia humana, estilos de vida, meio ambiente e serviços de saúde. Pode-se ver ainda neste relatório a articulação da noção de saúde com a da melhoria das condições de vida. Lá se defendia que o ambiente pode ter papel curativo importante, assim como a existência de serviços confiáveis de saúde pode exercer função preventiva pelo sentimento de confiança que cria na população. Ao mesmo tempo essa visão trazia para um mesmo plano de discussão e intervenção, algo que sempre tendia a ser tratado separadamente: ações curativas e preventivas.

Essa década, que se caracterizou por intensos debates e intercambio de idéias, no plano internacional, também pode ser caracterizada pela confluência de varias posições próximas à visão da determinação social do processo saúde-doença constituindo, no continente americano, um forte movimento que reeditou, mesmo que num outro patamar, os elementos fundamentais que estavam nas discussões travadas na Europa dos séculos anteriores, que conformaram a medicina social como o processo histórico que conhecemos. Esse movimento vigoroso, trabalhando dentro de uma visão marxista do processo produtivo e das relações sociais de produção, defendia que é no modo como o homem se apropria da natureza, em um dado momento, apropriação que se realiza por meio do processo de trabalho baseado em determinado desenvolvimento das forças produtivas e relações sociais de produção, que deve ser compreendido o processo saúde-doença; uma vez que este é, antes de qualquer coisa, um processo social que tem raízes históricas e possui determinantes e condicionantes sócio-econômicos, político-sociais, sócio-culturais e ambientais. A evolução da teoria social da medicina na América Latina resultou numa definição, talvez a mais acabada, que diz que:

“Por processo saúde doença da coletividade deve ser entendido o modo específico pelo qual ocorre, nos grupos, o processo biológico de desgaste e reprodução, destacando como momentos particulares a presença de um funcionamento biológico diferente, com conseqüências para o desenvolvimento regular das atividades cotidianas, isto é, o surgimento da doença (...) o próprio padrão social de desgaste e reprodução biológica determina o marco dentro do qual a doença é gerada. É neste contexto que se deverá recuperar a não especificidade etiológica do social e, inclusive, do padrão de desgaste e reprodução biológica relativa à doença, pois não se expressam em entidades patológicas especificas, mas no que chamamos o perfil patológico, que é uma ampla gama de padecimentos específicos, mais ou menos bem definidos. (LAURELL, 1983, p. 151 e 157)[12]

Por essas definições pode-se concluir que os homens são, a um só tempo, corpos biológicos e corpos sociais e que a dupla determinação biológica e social da saúde-doença tem um caráter histórico de reprodução onde o padrão social de reprodução biológica determina o viver/adoecer/morrer das pessoas e da coletividade.

Nas últimas décadas, a concepção do processo saúde e doença enquanto uma relação dinâmica entre determinantes e condicionantes[13] econômicos, políticos, sociais, biológicos, psicológicos e culturais tem evoluído consideravelmente. Hoje, entende-se que o meio familiar e profissional do indivíduo, assim como o grau de satisfação e produtividade são importantes variáveis na definição do gradiente de sanidade. Compreende-se que as situações de trabalho são dinâmicas e conduzem tanto ao prazer quanto ao sofrimento e a depender da prescrição e da psicodinâmica que se imprima ao trabalho, este pode relacionar-se tanto com saúde como com doença. Compreende-se que em seu sentido mais abrangente, alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente e ecossistema estáveis; trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, paz, acesso e posse de terra e acesso a serviços de saúde, assim como a conservação e utilização racional dos recursos, da justiça social e da eqüidade, são requisitos fundamentais para a saúde.

Saúde e doença resultam das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida. Assim, na sociedade existem comunidades, famílias e indivíduos com maior probabilidade do que outros de apresentarem problemas de saúde, acidentes, morte prematura; em contrapartida, há os que apresentam maior probabilidade de apresentarem boas condições de saúde. Saúde e doença, portanto, não são conceitos abstratos, mas, antes se definem no contexto histórico e determinado da sociedade e num dado momento de seu desenvolvimento, devendo ser conquistada pela população em suas lutas cotidianas. E a atuação dos profissionais frente a esse processo deverá se caracterizar sempre pela produção/ação do conhecimento que propiciará a melhor e mais adequada intervenção sobre as variáveis que constituem as condições de saúde, de forma a alterá-las sempre para melhor.

REFERÊNCIAS

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[1] O autor é médico sanitarista, mestre em ciências sociais, doutorando em educação popular e professor da Universidade Federal da Paraíba;
[2] Há uma série de observações empíricas muito antigas relativas às enfermidades. Os hindus, por exemplo, já indicavam a presença de açúcar na urina de certas pessoas diabéticas pelo menos dois mil anos antes disso ser cientificamente comprovado. Isso também é válido para a relação entre malária e algumas linhagens de mosquitos, assim como a descoberta de sinais clínicos que denotavam a ocorrência de fraturas em pessoas acidentadas ou que haviam sofrido traumas. Todos esses exemplos demonstram que a observação, a experiência e o raciocínio eram os elementos fundamentais de definição de saúde e doença.
[3] Este autor, citando Marilena Chauí, esclarece numa nota de rodapé da sua obra que Mètis na mitologia grega é mulher de Zeus, rei dos deuses do Olimpo, e tem três filhos: Skótus (sombra, treva, ausência de luz), Poros (o estratagema, o que sabe encontrar um caminho onde não há caminho, onde há aporia) e Tecmar (o que produz sinais e indícios para percorrer um caminho e chegar ao final do percurso.) Esclarece também, ainda citando Chauí, que Mètis dá origem à oposição primordial que define a técnica: a oposição entre a treva ou a aporia e o estratagema astucioso, que se vale de sinais e índices para resolver dificuldades.
[4] Para uma boa retrospectiva da historiografia deste e de outros períodos da trajetória da humanidade, há uma infinidade de obras a disposição dos interessados. Particularmente indicamos: VICENTINO, C. História Geral: Idade Média, Moderna e Contemporânea, incluindo Pré-História, Grécia e Roma. 5ª edição. São Paulo: Scipione, 1994;
[5] Quem se interessar, a curiosa obra deste autor: De Morbis Artificum Diatriba, foi publicada, no original, pela FUNDACENTRO, órgão da estrutura do Ministério do Trabalho, em 1971. Mas, há também uma tradução impressa e publicada pela mesma FUNDACENTRO na década de oitenta do século passado. A referencia completa da publicação mais recente é a seguinte: RAMAZZINI, B. As doenças dos trabalhadores. São Paulo: FUNDACENTRO, 1985;
[6] Datam dos séculos XVI e XVII os estudos de William Harvey (1578-1657) que retomou estudos anteriores de Miguel Servet (1511-1553) e avançou sobre a circulação sangüínea, inicialmente nas ovelhas e depois no próprio homem, iniciando e dando força aos estudos posteriores de anatomia comparada. Os estudos de André Vesálio (1514-1590), Ambroise Paré (1509-1564), Pierre Franco (1500-1561), Gabriele Fallópio (1523-1563), e Tagliacozzi (1546-1599), por outro lado, impulsionaram a área da anatomia e da cirurgia, inclusive a cirurgia plástica, que tem seu início neste período. Para uma recuperação consistente da história da saúde pública neste e noutros períodos, indicamos um interessante texto de GUTIERREZ, P.R; OBERDIEK, H.I. – Concepções sobre a Saúde e a Doença. In: Selma Maffei de Andrade, Darli Antonio Soares, Luiz Cordoni Junior (orgs.). Bases da Saúde Coletiva. Londrina: EDUEL, 2001;

[7]Os socialistas utópicos eram teóricos idealistas, normalmente vindos das classes burguesas, que procuravam conciliar numa sociedade ideal, os princípios liberais em voga com as necessidades emergentes do operariado fabril resultante da revolução industrial. Pela atuação destacada junto aos socialistas científicos e anarquistas, ao lutarem em favor operariado inglês, tiveram importância histórica;
[8] Nesse período da revolução industrial foram produzidos muitos relatórios que denunciavam a situação de penúria, de miséria e de exploração em que vivia as grandes massas da população e pelo menos um, produzido enquanto esta realidade se dava, merece ser lembrado: “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra” de Friedrich Engels (1845), por sua riqueza monumental, seu estilo vibrante, erudito e sua extrema lucidez; o que imprime e esta obra um valor histórico inesgotável. Há ainda uma obra de uma historiadora brasileira dos dias de hoje que retrata esta mesma época. A obra chama-se “Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza”. A autora é Maria Stella M. Bresciani;
[9] A Organização Mundial de Saúde (OMS), na Carta Magna de 07 de abril de 1948, possivelmente influenciada por esse movimento, estabelece o conceito de saúde como: “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de afecção ou doença”. Fica implícito neste conceito uma visão muito subjetiva de saúde, que entretanto tornou-se, talvez, o mais difundido nos últimos cinqüenta anos;
[10] O modelo em questão, em todos os seus detalhes, pode ser encontrado em MACMAHON, B. & PUGH, T.F. Princípios e métodos da epidemiologia. Rio de Janeiro, McGraw-Hill do Brasil, 1978;
[11] Conferir em LEAVELL, H. & CLARK, E. G. Medicina Preventiva. Rio de Janeiro, McGraw-Hill do Brasil, 1976;

[12] Indicamos a leitura completa do artigo onde se encontra esta definição. A referência completa é: LAURELL, A. C. A saúde-doença como processo social. In: Nunes, E.D. Medicina Social: aspectos históricos e teóricos. Coleção Textos n.º 3, Global Editora, 1983;
[13] Em termos do Brasil, torna-se obrigatório fazer menção a um longo processo, inicialmente produzido e alimentado pelos movimentos sociais e pela academia, que mais tarde, a partir do evento da “Nova República”, também é assumido pelos meios político-institucionais, num movimento plural que detonou o movimento da reforma sanitária brasileira. A VIII Conferência Nacional de Saúde foi o evento emblemático que coroou a primeira parte desse processo e disparou um movimento institucional que mais tarde (1988) criou, via processo constituinte, o Sistema Único de Saúde. A regulamentação do SUS, através da Lei Orgânica da Saúde, de 1990, alargou a compreensão de saúde-doença escrevendo na lei um conceito moderno e ampliado que reconhece que saúde e doença possuem determinantes e condicionantes sociais, econômicos, políticos e culturais.

sábado, 12 de agosto de 2006

TEORIA DO CONHECIMENTO EM MATURANA E VARELA – MOVIMENTO REALIDADE E AUTOPOIESE –[1]

Texto apresentado ao Departamento de Nutrição da UFPB como parte das exigências para obtenção da progressão vertical de Professor Assistente IV para Professor Adjunto I.

Lindemberg Medeiros de Araújo[2]

RESUMO

Este é um ensaio sobre “A Árvore do Conhecimento”, obra escrita por Maturana e Varela. Nele são tentadas algumas aproximações entre o pensamento e o método dos autores e a dialética, especialmente através de uma das categorias que lhe é imanente: o movimento. A teoria da autopoiese é dissecada enquanto o conceito central da obra.

Palavras chaves: movimento, dialética, autopoiese.

ABSTRACT

This is an essay about Maturana and Varela´s book, “The Tree of Knowledge”. My aim is to unveil some similarities between the tradition of dialectic and the authors’ method and thought, specially throughout one of the categories that is immanent of dialectic: the movement. The autopoieses theory is analysed and presented as the main concept of their theory.

Key words: movement, dialectic, autopoieses.

INTRODUÇÃO

Costumamos dizer que a filosofia antecedeu a ciência uma vez que foi a primeira tentativa de sistematização do conhecimento. O exercício de leitura de A Árvore do Conhecimento[3] leva-nos a reverberar sobre a filosofia e o método da ciência que subjaz às idéias e conceitos emitidos pelos autores, especialmente quando questionam o representacionismo e o cartesianismo da ciência clássica moderna. Na obra em questão, filosofia e ciência estão amalgamadas formando uma totalidade que, longe de ser unívoca, parece nos convidar para uma reflexão sobre o movimento, e suas contradições, enquanto categoria básica da dialética.

A produção de Maturana e Varela faz-nos pensar sobre a história dos fenômenos biológicos e humanos e sobre a nossa trajetória na face da terra. Ao recuperarem a nossa história biológica mostram-nos, aliás, como Piaget, que os fenômenos humanos são biológicos nas suas raízes, sociais nos seus fins e mentais nos seus meios.

A leitura desses pensadores leva-nos a perceber o quanto as suas teorias ajudam a repensar outras áreas do conhecimento como, por exemplo, a pedagogia, a psicologia, a sociologia, a economia e a comunicação, pois, ao adentrarmo-nos nos processos biológicos e sociais que comandam o desenvolvimento do sistema nervoso, o cérebro e os atos cognitivos, processos que justificam a nossa humanidade e racionalidade, permite-nos ver, com mais detalhe, como somos capazes de representar, e assim, transformar o mundo.

E como se torna impossível tratarmos de forma mais aprofundada as diversas conseqüências geradas pela teoria do conhecimento que perpassa a obra A Árvore do Conhecimento, nos propomos a abordar a dialética que nela se revela. Assim, tentaremos fazer algumas aproximações do pensamento e método dos autores com a dialética, especialmente através de uma das categorias que lhe é imanente: o movimento.

MOVIMENTO E REALIDADE

A noção de movimento enquanto exercício teórico de apreender a realidade nos acompanha desde a Grécia antiga, desde os primórdios do pensamento filosófico ocidental, quando os gregos passaram a se interessar e perguntar acerca do movimento das coisas. Nesse sentido, questões como a origem do mundo, da natureza e da vida, a reprodução e evolução dos seres vivos e a tentativa de explicação da contradição entre a vida e a morte e a perpetuação e desaparecimento das espécies, já estavam presentes no período pré-socrático ou cosmológico.

Melo Neto (1996) ao sintetizar os períodos que marcaram o pensamento grego antigo, num ensaio sobre o movimento e seu diálogo com a natureza, nos dá conta de que

“Das várias características da cosmologia salienta-se o seu caráter explicativo, racional e sistemático sobre a origem do mundo, a transformação da natureza e, explicando-o, mostra também a origem e as mudanças dos seres humanos” (MELO NETO, 1996, p. 08)

Seguindo na trilha desse autor, destacamos, entre os filósofos pré-socráticos, Heráclito de Éfeso, o primeiro filósofo a contemplar o movimento e relacioná-lo com a mudança e a contradição, aspectos fundamentais presentes nas relações do homem com a natureza e na natureza. Heráclito tentava compreender e explicar a dimensão de movimento que se expressa na mudança de qualidade ou quantidade das coisas, especialmente as da natureza. O seu estudo do movimento nos leva de saída ao conceito de physis.

A physis como a base de tudo. Como o princípio que nos faz compreender o mundo que nos rodeia e que adquire, dentro da dinâmica do princípio inteligente, circunstância e significado. A physis pode, se quisermos, assumir diferentes denominações para um mesmo sentido: espírito, pensamento, inteligência, palavra, cultura. Para os pré-socráticos e especialmente para Heráclito, ela denotava a própria natureza em seu movimento natural, movimento que se faz na gênese das coisas e de si mesma trazendo no seu bojo a mudança e a contradição.

[A] Physis pode ser apreendida em tudo que acontece. Constitui a totalidade de tudo que é. Ela está na aurora, no nascimento das plantas, no nascimento de animais e homens. Pensando a physis, o filósofo pré-socrático pensa o ser. Pensa a compreensão da totalidade do real – cosmos, deuses, homem, verdade, animado e inanimado, sabedoria, política e justiça. Pensar a physis é pensar o movimento (MELO NETO, 1996, p.12).

A leitura de alguns fragmentos, os que chegaram até nós, dos escritos de Heráclito demonstra que ele entendia que a lei fundamental que governa o universo é a luta entre os contrários, luta que em última análise constituem uma unidade profunda. A contradição que está presente em Deus que é dia e noite, guerra e paz, inverno e verão, fome e saciedade (fr. 67); que se expressa nas correlações mais variadas como as que existem entre completo e incompleto, concorde e discorde, harmonia e desarmonia e de todas as coisas um, e de um, todas as coisas. (fr.10).

O movimento, a mudança e a contradição, presentes nas coisas, para Heráclito, aparece também no fragmento 50, que afirma a unidade que existe entre o separado e o não separado, o mortal e o não mortal, o gerado e o não gerado, a palavra (logos) e o eterno, o pai e o filho, Deus e a justiça. É sábio que os que ouviram, não a mim, mas as minhas palavras (logos) reconheçam que todas as coisas são um (fr.50).

Por sua vez, no fragmento 193 ele defende que na circunferência, o princípio e o fim se confundem. Que há, ainda que oculta, uma harmonia no universo. Uma harmonia que não é estática, mas equilíbrio dinâmico das tensões entre os contrários. Uma harmonia tensa como ocorre entre o arco e a lira (fr.53). A unidade das coisas é algo constitutivo da própria physis.

Cordon & Martinez (1983), entretanto, nos alertam para o perigo de apreendermos o pensamento de Heráclito como algo caótico no seu vir a ser, no seu devir. Assim defendem que o devir não se estabelece como uma irracionalidade absoluta do real, já que está submetido à lei da identidade e se submete a suas regras e proporções. “A lei, ou logos, interna do devir universal constitui o verdadeiro princípio educativo do universo” (CORDON & MARTINEZ, 1983, p. 33).

Mas esta compreensão, já na Grécia antiga, estava longe de ser única, tanto que vários outros pensadores e filósofos da época se colocavam em oposição ao pensamento de Heráclito. A sua visão era diversa em relação, por exemplo, ao pensamento de Parmênides, que defendia a imutabilidade das coisas e não compreendia como seria possível algo deixar de ser o que é para tornar-se outra coisa.

Este filósofo, também pré-socrático, não compreendia como o movimento e a mudança poderiam estar presentes em todas as coisas. (...) “em nós manifesta-se sempre uma e a mesma coisa: vida e morte, vigília e sono, juventude e velhice. A mudança de um dá o outro e reciprocamente”, (fr.88) era o que afirmava Heráclito. Como ser e não ser ao mesmo tempo? Era a pergunta que brotava da mente e da incompreensão de Parmênides.

Contemplando esta divergência, Konder (1990) reconhece que o pensar estático de Parmênides logrou bem mais êxito entre os gregos da época, afinal tornava-se bem mais inteligível e passível de aceitação “essa linha – que podemos chamar de metafísica – [que] acabou prevalecendo sobre a dialética de Heráclito”. (KONDER, 1990, p. 09).

Posto que a sua formulação sobre movimento chamou-nos a atenção para a dialética, o pensamento de Heráclito possibilitou, e possibilita ainda hoje, diferentes interpretações. Basta que examinemos, com a ajuda de Konder (1990), as diferentes interpretações de Hegel e Marx sobre esta mesma questão. Em Hegel o movimento e a dialética, tratados no campo das idéias, se afastam de alguma forma da formulação original de Heráclito. Já em Marx, que admite a anterioridade da matéria, a aproximação é, ao que parece, mais evidente. Senão vejamos:

“Hegel descrevia o processo global da realidade da seguinte maneira: a idéia absoluta assumiu a imperfeição (a instabilidade) da matéria, desdobrou-se em uma série de movimentos que a explicitavam e realizavam, para afinal, com a trajetória ascensional do ser humano, iniciar, enriquecida – o seu retorno a si mesma”. (KONDER, 1990, p. 51)

Como podemos ver, Hegel, por seu idealismo, possuía uma concepção fechada do movimento da realidade; fechada porque supunha o conhecimento do ponto de partida e do posto de chegada do movimento da realidade. Aliás, a visão de identidade em Heráclito também parece padecer do mesmo problema. Em Marx vemos o contrário da posição hegeliana. O movimento é concebido como uma totalidade, uma realidade aberta, nunca presa a esquemas que pretendam aprisionar a infinita riqueza do real ao conhecimento.

“O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, isto, é unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como o processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida da intuição e da representação (...) Por isto é que Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que se sintetiza em si, se aprofunda em si, e se move por si mesmo; enquanto que o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo como concreto pensado. Mas esse não é de modo nenhum o processo da gênese do próprio concreto. (MARX , 1987, p. 16-17)

A visão marxiana do movimento, assim como da realidade, é múltipla. Por isso a sua conceituação é fluida e, portanto, próxima da de Heráclito.

Trazendo a discussão do movimento para o que nos interessa, ou seja, para a teoria de conhecimento presente em Maturana e Varela, o que pretendemos daqui para frente é demonstrar a convergência entre os conceitos que estes autores formularam para explicar o movimento da autopoiese e a noção de physis nos gregos – em Heráclito em particular.

AS BASES EPISTÊMICAS DE MARURANA E VARELA: CONHECIMENTO, MOVIMENTO E AUTOPOIESE

Maturana e Varela, na obra que destacamos, partem do princípio de que a vida é um processo contínuo de conhecimento. A conseqüência disso é que se tomarmos como objetivo compreende-la, será necessário entendermos como conhecemos e o que conhecemos. Nesta perspectiva, necessariamente, teremos que nos remeter à experiência cotidiana, ao fenômeno do conhecer. Essa atitude, em princípio, nos leva a três conseqüências que se põem em movimento ininterrupto: olhar, explicar, agir.

Com efeito, se fazemos parte do mundo, vale dizer, da vida, é plausível nos colocarmos no posto de observadores e com a nossa experiência sensível propormo-nos a explicar o mundo tal qual o conhecemos, o que nos leva a um agir conforme experienciamos e representamos esse mesmo mundo.

É aqui que encontramos um primeiro problema: o conhecimento, nas suas diversas formas, tem sido visto pela ciência moderna como a representação fiel de uma realidade independente do conhecedor. Ao olhar o mundo, ao explicar o mundo, e ao agir no mundo construímos representações. O Representacionismo seria, portanto, o marco epistemológico prevalente na nossa cultura. Nas palavras dos autores: “o conhecimento é um fenômeno baseado em representações que fazemos do mundo (...) O mundo conteria ‘informações’ e a nossa tarefa seria extraí-las por meio da cognição”. (pág 08)

Considerando essa visão, o homem tomaria o mundo como um objeto e o exploraria dele tirando benefícios. Aí repousaria a base do nosso modelo científico de cunho extrativista. Nele, a objetividade seria privilegiada e a subjetividade descartada como algo que comprometeria a exatidão científica. Como seres da cultura – onde na essência construímos a nossa pretensa objetividade – temos dificuldade de lidar com tudo aquilo que é subjetivo e qualitativo. Em outras palavras, porque produzimos cultura somos humanos e, em sendo seres da cultura, por vezes esquecemos o que somos. Temos dificuldade de compreender que objetividade e subjetividade e quantitativo e qualitativo mantêm entre si uma relação complementar, dialética; são indispensáveis ao conhecimento e, portanto, à ciência.

Talvez por isso, Mariotti (1999), interpretando Martin Heidegger[4], comente que, para aquele filósofo, temos uma tendência a alienarmo-nos das coisas do mundo, o que faz com que nos esqueçamos do nosso Ser. É essa tal alienação que faz com que nos percamos nas nossas coisas (nos utensílios na terminologia do filósofo). Essa condição nos leva a valorizar em excesso os objetos, em detrimento da nossa própria valorização como seres humanos e, por extensão, negarmos a humanidade dos nossos semelhantes.

Ao nosso ver, o raciocínio de Heidegger entra em conexão com o dos autores que estamos abordando, especialmente quando estes sustentam que a posição teórica do representacionismo extrativista produziu e continua a produzir conseqüências éticas que ficam subsumidas nas práticas sociais.

“Ao nos convencer que cada um de nós é separado do mundo (e em conseqüência das outras pessoas), a visão representacionista em muitos casos terminou desencadeando graves distorções de comportamento, tanto em relação ao ambiente quanto no que diz respeito à alteridade” (pág. 08)

Enfrentando essa discussão a partir de metáforas e fatos concretos que descrevem a nossa experiência sensível, Maturana e Varela buscam abalar em todos nós o edifício da objetividade que construímos ao longo da nossa existência com os tijolos e a argamassa do pensamento linear, onde reside a nossa tentação de certeza.

Contrariando essa tentação de objetividade, assumem na obra A Árvore do Conhecimento, a seguinte tese:

“Vivemos com os outros seres vivos, e portanto compartilhamos com eles o processo vital. Construímos o mundo em que vivemos durante as nossas vidas. Por sua vez ele também nos constrói ao longo dessa viagem comum. Assim se vivemos e nos comportamos de um modo que torna insatisfatória a nossa qualidade de vida, a responsabilidade cabe a nós. (pág. 10)

Dando conseqüência a esta tese, adiantam uma primeira síntese que se torna fundamental para uma conexão de sua obra com a educação popular ao afirmarem que

“Se a vida é um processo de conhecimento, os seres vivos constroem esse conhecimento não a partir de uma atitude passiva e sim pela interação. Essa posição é estranha a quase tudo que nos chega por meio da educação formal” (pág. 12).

Os seres vivos são autônomos, isto é, autoprodutores – capazes de produzirem seus próprios componentes ao interagir com o meio: vivem no conhecimento e conhecem no viver. Disso decorre os aforismos construídos pelos autores para resumirem a sua atitude epistemológica: “Todo fazer é um conhecer e todo conhecer é um fazer (...) Tudo o que é dito é dito por alguém”. (pág. 31).

Os autores partem da fenomenologia biológica e pretendem com ela explicar como conhecemos. Nesse sentido defendem que o fenômeno do conhecimento e as ações dele derivadas resultam da nossa experiência cognitiva; e que esta decorre da evolução da nossa estrutura biológica individual, da nossa diferenciação, única no diverso que constitui a história biológica dos seres vivos no mundo.

Seguindo a sua trajetória de desenvolver a nossa história biológica afirmam que enquanto seres vivos, somos solitários no primeiro ato de conhecer. Solidão que só é transcendida no mundo que criamos junto com ele. É a partir dessa criação que nos fazemos no mundo através do fenômeno da “autopoiese”. Esse termo cunhado pelos autores é derivado do grego poiesis, que denota produção. Autopoiese (autoprodução), portanto, é usado para definir os seres vivos como sistemas que se autoproduzem de modo ininterrupto.

Enquanto seres vivos somos autopoiéticos porque estamos a todo instante recompondo nossos componentes desgastados. E nessa condição somos a um só tempo produtores e produto de nós mesmos. É indispensável, porém, acrescentar que para que os seres vivos exerçam a autopoiese precisam, necessariamente, recorrer aos recursos do meio ambiente, tornando-se desta forma autônomos e dependentes. Condição que encerra em si uma contradição, um paradoxo.

Contradição que os autores afirmam jamais poder ser entendida usando-se simplesmente o pensamento linear formatado em termos de construções de natureza binária. Mas que, por outro lado poderá se tornar compreensível, por exemplo, através do pensamento complexo proposto por Morin; quando este defende uma complementaridade entre o raciocínio sistêmico e o linear. (Mariotti, 2000)

Para Maturana e Varela, só quando procuramos compreender o caráter sistêmico da célula é que conseguimos entender adequadamente os organismos e suas conseqüências. Esse movimento é que constitui o que chamam de biologia da cognição. Neste sentido, explicam o fenômeno do conhecer tomando a universalidade do fazer no conhecer e submetendo o seu objeto aos critérios formais de validade científica: descrição do fenômeno; proposição de um sistema conceitual explicativo do fenômeno; dedução, a partir de b, de outros fenômenos associados ao seu fenômeno e, observação desses outros fenômenos deduzidos a partir de b.

Assim, definem o fenômeno do conhecer como “uma ação efetiva, ou seja, uma efetividade operacional no domínio de existência do ser vivo. (...) ação que permita um ser vivo continuar sua existência em um determinado meio ao fazer surgir o seu mundo” (págs. 35/36).

FENOMENOLOGIA BIOLÓGICA: MOVIMENTO E AUTOPOIESE

Para que compreendamos a fenomenologia biológica, os autores nos levam de volta a bilhões de anos atrás e recuperam na história biológica os conceitos de distinção, organização, estrutura, acoplamento estrutural e deriva filogenética, bases para o entendimento da autopoiese e da nossa evolução enquanto seres vivos.

A vida dos seres vivos na terra, seguindo o raciocínio da fenomenologia biológica, está ligada às condições anteriores de organização que permitiram a existência dos átomos; que permitiram que estes formassem as primeiras moléculas; que estas se combinassem e se agrupassem formando moléculas mais complexas e substâncias, que por sua vez puderam diferenciar-se, relacionar-se e se organizar formando a primeira célula, uma organização já bastante complexa que deu origem aos primeiros organismos unicelulares.

Quando descrevemos desta forma, num parágrafo, o que se deu em bilhões de anos, na verdade estamos especificando inúmeros atos de diferenciação, ou seja, estamos distinguindo, átomos, moléculas, substâncias, célula, organismos, no contexto da história biológica. “O ato de designar qualquer ente, objeto, coisa ou unidade, está ligado à realização de um ato de distinção, que separa o designado e o distingue de um fundo” (pág 47). Este ato de distinguir especifica que estamos falando das propriedades desses entes enquanto unidades. E é exatamente com esta compreensão que queremos representar a história biológica mais remota dos seres vivos.

Aqui, para que possamos entender verdadeiramente o percurso dos autores é necessário que paremos um pouco e entendamos o papel da organização e da estrutura na determinação dos seres vivos. Quando falamos de organização de um ser vivo dizemos de como ele está configurado. Portanto, a organização é o determinante de definição dos seres vivos. Por outro lado, quando falamos de estrutura, dizemos de como as partes de um ser vivo interagem para que a sua organização funcione. A estrutura é, assim, o determinante operacional de todo ser vivo.

Mas a compreensão destes dois conceitos ainda não é suficiente para entendermos os seres vivos, para distingui-los. Afinal, os não vivos também podem ser analisados enquanto organização e enquanto estrutura. Neste ponto, então, torna-se fundamental as noções de ontogenia, acoplamento estrutural, clausura operacional, filogenia e deriva natural, uma vez que estes dão novos contornos à definição da fenomenologia biológica dos seres vivos.

A ontogenia é a história das modificações estruturais por que passou um ser, uma unidade, sem que esta perca a sua organização. Ela resulta de interações com o meio em que vive este ser ou da sua dinâmica de funcionamento interno. A ontogenia de um ser é uma deriva de modificações estruturais com invariância da organização. Portanto estão aí presentes a conservação e a adaptação, como veremos mais adiante quando ocuparmo-nos dos conceitos de filogenia e deriva natural. A história ontogenética de um ser não cessa enquanto este ser existir.

O acoplamento estrutural pode ser entendido como um conjunto de mudanças que o meio provoca na estrutura de um determinado organismo e vice-versa, numa relação circular. Ou seja, um organismo é sempre fonte de resposta para o meio onde se encontra. Quando influenciado muda; mudado responde provocando também mudanças no meio que o influenciou. Em outras palavras: ao replicar, o influenciado dá sempre a sua interpretação de como percebeu a mudança ou deformação provocada pelo meio. Estabelece-se, portanto, um diálogo, uma transação, sempre recorrente enquanto permanecer o acoplamento estrutural.

E como lembram os autores “o acoplamento estrutural com o meio e como condição de existência, abrange todas as dimensões das interações celulares e, portanto, também as que têm a ver com outras células” (pág. 88/89). E aqui a afirmação do autor é válida também para todos os multicelulares, uma vez que eles coexistem em estreita relação com as outras células com as quais realizam a sua autopoiese.

A clausura operacional indica que quaisquer que sejam as mudanças fruto do acoplamento estrutural com o meio, provocadas em um ser vivo, elas serão sempre geradas a partir de modificações dentro deste mesmo ser vivo. Não é o meio externo que, de forma direta, determina as mudanças ao ser. Ela é sempre fruto de um conjunto de relações externas e internas do ser, que para tanto, lança mão de sua contabilidade lógica. Em outras palavras, funciona como uma rede fechada de mudanças que lhe é própria e que obedece a sua ontogenia e a sua filogenia, o que consiste na manutenção de certas relações entre os seus componentes, invariantes diante de perturbações (relações) geradas pelo meio.

Essa trajetória é que impulsionou os seres vivos e fez surgir a idéia de reprodução e hereditariedade, e com ela toda a sua diversidade, até chegarmos aos animais, aos hominídeos nossos ancestrais e, finalmente, ao homem, a estrutura mais complexa de que se tem notícia. Para melhor entender como tudo isso ocorreu, recorremos, finalmente, aos conceitos de filogenia e deriva natural.

Todos esses fenômenos que contam os bilhões de anos da história da vida na Terra devem ser entendidos, ao contrário do que possamos pensar num primeiro momento, em termos de uma profunda invariância, por um lado, e por uma mais que lenta variância por outro lado, dentro de um processo contínuo de reprodução das condições de conservação e variação dos seres vivos através dos milênios.

Neste sentido, filogenia pode ser conceituada como uma “sucessão de formas orgânicas geradas seqüencialmente por relações reprodutivas. As mudanças experimentadas ao longo da filogenia constituem a alteração filogenética ou evolutiva” (pág. 117). Daí podermos entender que as mudanças filogenéticas se constituem enquanto contradição da ontogenia e afirmação de novas linhagens de indivíduos que fazem evoluir a fenomenologia biológica, com o aparecimento de novas espécies (novas classes filogênicas).

Por sua vez o conceito de deriva natural diz respeito às mudanças filogenéticas experimentadas na evolução dos seres vivos. Mudanças estruturais que apenas parecem aleatórias e nas quais não há progresso nem otimização do uso do ambiente. O que há é apenas a conservação da adaptação e da autopoiese, num processo em que organismo e ambiente permanecem num contínuo acoplamento estrutural. Para exemplificar essa condição nos servimos de um exemplo oferecido pelos autores, onde eles descrevem a maneira como a coerência interna de um grupo de seres vivos compensa uma mudança importante na temperatura terrestre.

Afirmam, em primeiro lugar, que só os organismos que sejam capazes de viver dentro das novas faixas térmicas poderão manter ininterrupta a sua filogenia. Lembram que a compensação pode dar-se de vários modos: por meio do espessamento da pele, de modificações das taxas metabólicas, grandes migrações geográficas, etc. Esclarecem que o que vemos como adaptação ao frio inclui também o resto do organismo de forma global, já que o espessamento da pele implicará em mudanças correlatas, não apenas na pele e nos músculos, mas também no modo como os animais de um grupo se reconhecem entre si; no tônus muscular durante a marcha, por exemplo.

“Em outras palavras, já que todo sistema autopoiético é uma unidade de múltiplas interdependências, quando uma de suas dimensões é afetada o organismo inteiro experimenta mudanças correlativas, em muitas dimensões ao mesmo tempo. Mas é claro que tais mudanças que nos parecem corresponder a alterações ambientais não são causadas por estas: elas ocorrem na deriva configurada no encontro operacionalmente independente entre organismo e meio (...) Em resumo: a evolução é uma deriva natural, produto da invariância da autopoiese e da adaptação”. (pág.131)

É dentro desta circularidade que os autores querem que estabeleçamos a relação entre a fenomenologia social e a fenomenologia biológica. Por isso afirmam: “não há descontinuidade entre o social, o humano e suas raízes biológicas. O fenômeno do conhecer é um todo integrado e está fundamentado da mesma forma em todos os âmbitos”. (pág. 33)

Quem acompanhou este texto, até agora, pôde perceber que a análise da trajetória dos seres vivos no mundo, a partir da visão de movimento presente em Maturana e Varela, foi feita em termos deterministas, mostrando como a vida, vista dessa forma, se torna compreensível e como os seres vivos surgem dele como algo espontâneo e natural. Mas é necessário que isto não seja percebido em termos de previsibilidade. Só poderíamos falar de previsibilidade se, observando o estado atual de um ser vivo, pudéssemos afirmar com total certeza como este, num estágio subseqüente, se apresentaria; e que tal afirmação pudesse ser observada no momento exato determinado. Mas isso não acontece, pois, nem sempre é possível pensar os seres vivos com esse nível de previsibilidade.

BIOLOGIA DA COGNIÇÃO: FENOMENOLOGIA BIOLÓGICA E SOCIAL, LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO

Referindo-se aos humanos e ao seu sistema nervoso, os autores expressam a riqueza e a vastidão de domínios de interação que este sistema possibilita permitindo a geração de novos fenômenos e novas dimensões de acoplamento estrutural. Foi isso, e não outra coisa, que permitiu o desenvolvimento filogenético que resultou no homo sapiens e, em última instância, na linguagem e na autoconsciência humanas.

“O funcionamento do sistema nervoso é plenamente consistente com sua participação numa unidade autônoma, na qual todo estado de atividade leva a outro estado de atividade nela mesma, dado que o seu modo de operar é circular, ou em clausura operacional. Portanto por sua própria arquitetura, o sistema nervoso não viola, e sim enriquece, esse caráter autônomo do ser vivo (...) daí se segue que todo conhecer é fazer, como correlações sensório-efetoras nos domínios de acoplamento estrutural em que existe o sistema nervoso”. (pág. 185).

Os autores vêem o sistema nervoso da mesma forma como vêem os demais sistemas, uma vez que fazendo parte do organismo ele terá de funcionar contribuindo em cada momento para a sua determinação estrutural, ou seja, para a manutenção da sua estrutura, assim como para os seus resultados de funcionamento: visão, audição, linguagem e tato, por exemplo. Porém, é inegável que ter um sistema nervoso dotado de cefalização confere aos animais outra plasticidade estrutural, uma vez que amplia o domínio dos seus estados possíveis.

A plasticidade do sistema nervoso se explica exatamente pelas redes de relações que compõem equilíbrios dinâmicos que em si, e por si, desencadeiam mudanças estruturais locais e ao mesmo tempo sistêmicas. Lembram, por exemplo, o fato de que a corrente sangüínea, sempre carregada de substancias, as mais diversas, banha os neurônios, abrindo sempre mais e mais possibilidades de influencias do meio.

Neste ponto, os autores levantam um interessante debate para afirmar que quanto ao funcionamento do cérebro, estamos diante de uma cilada que nos coloca sobre um fio de navalha, ou seja, entre o solipsismo e o representacionismo. “Trata-se de uma cilada, porque não permite explicar a adequação ou a comensurabilidade entre o funcionamento do organismo e o seu mundo”. (pág. 151).

Afirmam ainda que, hoje, predomina o representacionismo, mas noutras épocas não foi assim, prevalecendo a visão do subjetivismo e do solipsismo. Ainda retomando a questão da plasticidade estrutural do sistema nervoso, nos humanos, os autores nos fazem julgar que foi a condição de ser ao mesmo tempo determinante e determinado que tornou possível ao homem desenvolver comportamentos instintivos (inatos) e aprendidos (natos), mesmo que estes comportamentos sejam, em geral, indistinguíveis em sua natureza e realização, pois a distinção só será possível na medida em que tivermos acesso a história das estruturas que a tornaram possíveis.

Neste sentido tudo que disseram aponta para “a compreensão da aprendizagem como expressão do acoplamento estrutural, que manterá sempre uma compatibilidade entre o funcionamento do organismo e o meio em que ele ocorre” (pág.193). Por fim, ainda sobre esse assunto, nos lembram que a visão representacionista considera que a aprendizagem e a memória, por exemplo, são fenômenos de comportamento que se dão pela captação ou recebimento de algo vindo do meio, o que implica supor que o cérebro trabalha com representações. Isso, na visão desenvolvida pelos autores, obscurece e complica o entendimento dos processos cognitivos.

Apesar de não tratarem em A Árvore do Conhecimento da explicação dos processos cognitivos, deixam-nos uma definição de ato cognitivo, como sendo toda interação, toda conduta de um organismo, que possa ser observada, avaliada por um observador. Nessa linha, o fato de viver permanentemente em acoplamento estrutural como ser vivo corresponde ao que vem afirmando os autores desde o início: conhecemos no âmbito do existir. Daí o aforismo: “viver é conhecer (viver é ação efetiva no existir como ser vivo)” (pág. 194)

Articulando a sua fenomenologia biológica com a fenomenologia social, Maturana e Varela, na perspectiva da comunicação, servem-se, inicialmente, de exemplos do reino animal para demonstrar a sociabilidade que existe entre as aves, entre os insetos e entre os mamíferos. Descrevem o fenômeno de trofolaxe, que determina a organização social entre as formigas e as abelhas, processo que define o lugar e o papel de cada uma nas suas sociedades. Na base de toda essa sociabilidade está a forma como eles se comunicam, determinados pelas suas filogenias e, mais que isso, pelas suas ontogenias.

“Essa fenomenologia se baseia no fato de que os organismos participantes satisfazem suas ontogenias individuais principalmente por meio de seus acoplamentos mútuos, na rede de interações recíprocas que formam ao constituir as unidades de terceira ordem”. (pág.214)

Desse acúmulo, decorre a necessidade de desenvolvermos mais alguns conceitos importantes para o aprofundamento do nosso entendimento. Eles dizem respeito a fenômenos sociais, comunicação e conduta cultural, todos com desdobramentos claros na diferenciação entre os animais em geral e o homem.

A comunicação denota a coordenação comportamental que observamos nos comportamentos comunicativos, a trofolaxe, por exemplo, que ocorre num acoplamento social. Como já dissemos, esses comportamentos são determinados pela ontogenia de cada ser e envolvem a imitação. Daí podermos evoluir para o entendimento de conduta cultural, como a estabilidade transgeracional de comportamentos adquiridos na dinâmica comunicativa de um meio social. Caso isso não acontecesse, os comportamentos seriam sempre os inventados em cada geração, o que de certa forma contrariaria quase tudo o que vimos discutindo até agora.

Recorrendo a Pinto (1979) para entendermos melhor a questão da cultura, em termos da abordagem pelo prisma da dialética, vale dizer do movimento, temos que o início da cultura não é datado, mas coincide com o processo de hominização.

“A criação da cultura e a criação do homem são na verdade duas faces de um só e mesmo processo, que passa de principalmente orgânico na primeira fase a principalmente social na segunda, sem, contudo em qualquer momento deixarem de estar presentes os dois aspectos e de se condicionarem reciprocamente (Pinto, 1979, pág.122)”.

A diferenciação dos seres humanos em relação aos outros seres vivos e, especialmente, em relação aos seus ancestrais, nos obriga a falarmos de descrição semântica, domínio lingüístico, linguagem e consciência (reflexão e autoconsciência). Essa discussão nos remete de volta a uma revisão sobre o papel da contabilidade lógica do sistema nervoso e ao fio de navalha sobre o qual caminhamos quando precisamos fazer a diferenciação entre o modo de operar de um organismo e a descrição dos seus comportamentos.

Utilizando os autores, dizemos que toda vez que possamos, enquanto observadores, significar (descrever) os comportamentos recorrentes de um ou mais indivíduos em acoplamento social, no qual se envolvam reciprocamente na realização de suas respectivas autopoieses, estaremos diante de uma descrição semântica. Neste caso, podemos dizer também que estamos diante de uma conduta comunicativa de natureza lingüística, já que podemos distingui-la enquanto construção semântica.

Podemos dizer ainda que diante de todos os comportamentos lingüísticos de um ser, falamos do domínio lingüístico deste ser; que quando operamos o nosso domínio lingüístico de forma consciente e usando a reflexão produzimos linguagem. A linguagem é a nossa “trofolaxe” social; pena que “Não conhecemos com precisão, e talvez não conheçamos nunca, os detalhes da história das transformações estruturais dos hominídeos. Infelizmente, a vida social e lingüística não deixa fósseis e não é possível reconstitui-la”. (pág. 240).

Mesmo não sendo possível esta reconstituição, os autores se esforçam em fazer uma cuidadosa e detalhada descrição, inclusive anatomo-fisiológica, do quanto o surgimento da linguagem interferiu na evolução dos seres humanos, revolucionando as suas relações sociais em todos os âmbitos, expandindo ainda mais os limites do seu sistema nervoso e, conseqüentemente, dos seus cérebros. Foi através da expansão desses limites, traduzido em acoplamentos estruturais lingüísticos e, portanto, sociais, que surgiu a mente e a consciência do homem. No dizer dos autores:

“As características únicas da vida social humana e seu intenso acoplamento lingüístico geraram um fenômeno novo, ao mesmo tempo tão próximo e tão distante da nossa própria experiência: a mente e a consciência. (...) Por sermos humanos, somos inseparáveis da trama de acoplamentos estruturais tecida por nossa permanente ‘trofolaxe’ lingüística. A linguagem não foi inventada por um indivíduo sozinho na apreensão de um mundo externo. Portanto, ela não pode ser usada como ferramenta para a revelação desse mundo. Ao contrário, é dentro da própria linguagem que o ato de conhecer, na coordenação comportamental que é a linguagem, faz surgir um mundo. Percebemo-nos num mútuo acoplamento lingüístico, não porque a linguagem nos permita dizer o que somos, mais porque somos na linguagem, num contínuo ser nos mundos lingüísticos e semânticos que geramos com os outros. ” (pág. 245/257)

Maturana e Varela, ainda acerca do nosso desconhecimento do movimento da realidade, acentuam a necessidade de um posicionamento ético frente ao que julgamos conhecer. Nesse posicionamento elegem o diálogo como pano fundo, ao afirmarem que:

“Todo ato humano ocorre na linguagem. Toda ação na linguagem produz o mundo que se cria com os outros, no ato de convivência que dá origem ao humano, por isso toda ação humana tem sentido ético. Essa ligação do humano ao humano é, em última instância, o fundamento de toda ética como reflexão sobre a legitimidade da presença do outro”.

Essa discussão que articula a questão da consciência/autoconsciência, a linguagem, a alteridade e a ética e, em conseqüência, a cultura e o diálogo, é fundamental e parece nos revelar uma contribuição interessante de Maturana e Varela para abordarmos a problemática da educação popular. Pode também estar nos indicando uma forte interseção com Freire, já que muito do que viemos discutindo neste texto, especialmente o que se refere ao movimento e a dialética, encontra-se na sua epistemologia. Senão, vejamos o que nos diz o próprio Freire nas duas passagens a seguir:

“Consciência e mundo não podem ser entendidos separadamente, dicotomizadamente, mas em suas relações contraditórias. Nem a consciência é a fazedora arbitrária do mundo, da objetividade, nem dele puro reflexo” (Freire 1997, pág. 12)

“O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na história”. (Freire, 1996, pág. 136).

FECHANDO (E REABRINDO) O DIÁLOGO SOBRE MOVIMENTO, REALIDADE E AUTOPOIESE, EM MATURANA E VARELA

Diante de tudo o que expomos, nos parece claro que em Maturana e Varela, assim como nos demais autores que nos auxiliaram no decorrer deste texto – em Heráclito especialmente – vida e realidade estão, as duas, irremediavelmente juntas num processo de conhecimento contínuo.

Assim, a história que descortina a realidade da vida biológica e social na Terra, não é outra senão a síntese de uma configuração dinâmica de fenômenos que são biológicos e sociais a um só tempo. A vida é fenômeno em movimento. E neste ponto, fenomenologia biológica e fenomenologia social compõem uma unidade dialética. Somos socialmente biológicos e biologicamente sociais. A separação quem faz é a nossa mente representacionista que separa o ser (o homem) do mundo (da natureza), o conhecer do conhecedor.

Compreender o movimento da vida dos seres vivos e desvendar a ontogenia e a filogenia dos seres humanos em busca da formação da sua autoconsciência, que se expressa nos atos cognitivos, é compreender como se revela a essência dos seres humanos e sua criação, vencendo, a cada momento, a visão de aparência e de certeza que resulta do representacionismo e do positivismo que dominam, contraditoriamente, a nossa consciência do mundo.

Neste aspecto, o estudo do movimento passa pelo estudo do modo de produção social, uma vez que não existe produção e reprodução social desvinculada da produção e da reprodução biológica. Podemos dizer que a fenomenologia biológica encontra-se subsumida na fenomenologia social e vice-versa. Elas compõem a totalidade do ser humano, que está na relação biologia x sociedade. O exercício de Maturana e Varela, na obra que examinamos, parece ter sido o de tentar compreender como essa totalidade se expressa na vida humana.

Há uma relação de determinação no movimento da autopoiese. Assim, a história biológica e social dos seres humanos é apresentada o tempo todo como uma tensão dialética entre o ser e o seu meio. A realidade social, assim como a realidade biológica, é essencialmente contradição, síntese, antítese, nova síntese e assim por diante. Enfim, movimento, contradição, mudança e unidade constante é o que há na realidade biológica e na realidade social. Portanto, não podemos afastar-nos desta unidade enquanto materialidade e consciência, o que nos vale dizer, enquanto conhecimento.

REFERÊNCIAS

CORDON, J.M.N. & MARTINEZ, T.C. – História da Filosofia. Os filósofos – Os textos. V.1. Lisboa/Rio Edições 70, 1983;

FREIRE, P. – Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 28ª edição. São Paulo, Paz e Terra, 1996;

FREIRE, P. – Política e educação. 3ª edição. São Paulo, Cortez, 1997 (Coleção questões da nossa época; v, 23)

HEIDEGGER, M. – Being and Time. Nova York: Harper & Row, 1962;

KONDER, L. – O que é Dialética. São Paulo, Brasiliense, 1992;

MARIOTTI, H. – Autopoiese, Cultura e Sociedade. Pluriversu – Complexidade, Política e Cultura. Texto datado de 1999 e colhido do site: www.geocities.com/pluriversu - pesquisa feita em Março/2004;

MARIOTTI, H. – As Paixões do Ego: Complexidade, Política e Solidariedade. São Paulo, Editora Pala Athenas, 2000;

MARX, K. – Manuscritos económicos-filosóficos e outros textos escolhidos. Os Pensadores. Karl Marx; seleção de textos de José Arthur Giannotti; tradução de José Carlos Bruni ... (et al.). – 4. ed. – São Paulo; Nova Cultural, 1987;

MATURANA, H.R. & VARELA, F.J – A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. Tradução; Humberto Mariotti e Lia Diskin. São Paulo, Pala Athenas, 2001;

MELO NETO, J.F. – HERÁCLITO: um diálogo com o movimento. João Pessoa, Editora Universitária, 1996;

PINTO, A.V. – Ciência e Existência – problemas filosóficos da pesquisa científica. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1979.


[1] Nos referimos especificamente a obra MATURANA, H.R. & VARELA, F.J – A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. Tradução; Humberto Mariotti e Lia Diskin. São Paulo, Pala Athenas, 2001. Ambos os seus autores são biólogos e orientaram os seus interesses de pesquisa e construção de conhecimento para a compreensão da vida dos seres vivos na terra e o desenvolvimento e funcionamento do sistema nervoso. Suas pesquisas além de se estenderem ao âmbito social e humano, deram um grande contributo para o desenvolvimento da neurociência.
[2] Professor Assistente da Universidade Federal da Paraíba. Médico Sanitarista (UFPB); Mestre em Ciências Sociais (MCS/CCHLA/UFPB) e doutorando em Educação Popular (PPGE/CE/UFPB);
[3] Trata-se de uma obra polêmica, complexa, reveladora, instigante, perturbadora e, sobretudo, transgressora. Ela merece todos esses adjetivos, justamente porque, entre outras coisas, abala os alicerces da ciência moderna e o seu edifício de certezas fundado no representacionismo e no cartesianismo. Mas, dialeticamente, faz isso sem descartar ou abrir mão dessas duas atitudes metodológicas.
[4] Conferir em HEIDEGGER, M. – Being and Time. Nova York: Harper & Row, 1962.

quarta-feira, 12 de julho de 2006

NOTAS SOBRE A REPRESENTAÇÃO DE INTERESSES, FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS E HEGEMONIA, NO GOVERNO LULA[1]

Lindemberg Medeiros de Araújo[2]

Quando falamos de política, falamos em grande medida de representação de interesses e, por conseguinte, de formulação de políticas que implementam ou bloqueiam tais interesses. A questão da representação de interesses não é nova e está presente na teoria política desde Aristóteles, que distinguia o bom e o mau governo em função dos interesses que este representava. Na medida que esse governo representasse o interesse comum seria um bom governo, um governo legítimo, independentemente se se tratava do governo de um, de poucos ou muitos.

Não é demais lembrar que essa noção de “interesse comum” há muito desapareceu, especialmente no pensamento moderno, de corte liberal. Rousseau foi o último a defendê-lo explicitamente dentro de uma tradição democrática e radical. Manteve-se, porém central a noção de interesse, enquanto concepção individualista “materialista” da sociedade (geralmente sinônimo de benefício material dentro de uma razão calculadora). O fato é que essa noção de interesse evoluiu, atravessou o tempo e se manteve viva em todas as fases da evolução histórica da teoria de Estado absolutista, burguês, liberal/capitalista, socialista, neoliberal.

Destas considerações iniciais podemos evoluir para, pelo menos, três questões básicas e fundamentais, que podem ser desdobradas, e em torno das quais pode girar a reflexão que ora queremos fazer do primeiro ano do governo Lula:

1. Como e quais interesses vêm sendo representados no governo comandado pelo PT?
2.
3. De quem são os interesses representados?
4.
5. Qual é a justificação para representar tais interesses? Será que poderíamos falar de uma hegemonia petista?
6.
As duas primeiras questões, como podemos ver, estão ligadas à estrutura e a natureza do Estado e da sua formulação de políticas, enquanto a terceira questão envolve o problema de legitimidade (melhor seria dizer de hegemonia) política do governo.

Caberia, neste caso, primeiro averiguar o que mudou ou se algo mudou no Estado brasileiro com a subida ao governo da coalizão de forças hegemonizada (talvez fosse melhor dizer administrada) pelo PT. A resposta parece clara e simples: nada ou quase nada mudou. Trocamos a direção política do governo. Mas, mudar o Estado será uma tarefa bem mais complexa e demorada que demanda (demandará) várias reformas, entre elas a política e a do judiciário, o que dependerá da nossa capacidade de construir uma hegemonia suficientemente firme e duradora para a efetivação do objetivo. Isso exige ainda uma reforma ética. Como vemos não é/será nada fácil.

Assim a questão atual, se aqui recuperamos o pensamento de GRAMSCI, é a de como compatibilizar a pluralidade de interesses coletivos hoje presente no cenário político social brasileiro – uma vez que a política real não é obra das maiorias, mas, sim de várias pequenas elites representativas de múltiplos interesses. As maiorias, na prática, foram historicamente alienadas do processo de formulação e representação de interesses pelo pensamento e pela ação liberal capitalista que tratou (e trata ainda) de exorcizar qualquer fantasma das maiorias sob o pretexto que elas não são estáveis, pois são obstaculizadas pela fragmentação de interesses e pela apatia generalizada.

Tentando de alguma forma dar respostas mínimas aos problemas e as pressões sociais, os estados capitalistas, especialmente os europeus, até a década passada atuavam dentro de um padrão de políticas sociais compensatórias conhecidas como Welfare State (Estado de Bem Estar Social), política que a partir da década de 90 do último século foi abandonada em favor do estado mínimo neoliberal.

Em termos mais recentes e considerando a questão das políticas sociais, a teoria marxista não desqualifica inteiramente o diagnóstico conservador da crise do Welfare State. Reconhece que enquanto se mantiver o domínio da lógica capitalista, a ampliação do pluralismo corporativista conduz efetivamente a uma “crise fiscal do Estado” e, em decorrência, a um “déficit de legitimação”. Mas a solução apontada pelos marxistas para a crise precisa ser, naturalmente, bem diversa daquela apontada pelo liberal capitalismo. E nesse caso, é hora de avaliarmos concreta e conseqüentemente a nossa política econômica. Aonde ela poderá realmente nos levar? Que objetivos serão conseguidos? Quem serão os que realizarão seus interesses com essa política? Que alternativas podemos apontar?

Desenvolvendo as reflexões de GRAMSCI, Pietro Ingrao, por exemplo, pensa que a solução para os males do corporativismo capitalista reside na elaboração de um novo tipo de hegemonia que se articule organicamente com o pluralismo, que considera como um fenômeno ineliminável das complexas sociedades modernas.

Considerando essa posição, diria que essa nova concepção de hegemonia implica a criação de blocos majoritários que se articulem em torno de questões de abrangência nacional (como saúde e educação, por exemplo) elaborando propostas globais de reforma que transcendam (mas sem ignorar) os interesses meramente corporativos dos múltiplos segmentos envolvidos.

Essas reformas globais – cuja efetivação pode ser progressiva e não simultânea, e cujos atores não precisam ser rigorosamente os mesmos em todos os casos – deveriam apontar em conjunto, no sentido de um reordenamento da sociedade, de uma superação da lógica capitalista.

A estrutura institucional que prepara e consolida essa nova hegemonia das classes subalternas é concebida como uma “democracia de massas” (em contraste com o liberal-corporativismo da proposta pluralista); e sua estratégia pode ser definida como um “reformismo revolucionário” (um objetivo revolucionário, superador do capitalismo, que se explicita por meio de reformas graduais).

Nessa nova concepção neogramsciana de hegemonia, torna-se possível conservar o pluralismo da sociedade civil e, ao mesmo tempo, evitar o corporativismo selvagem que desemboca na ingovernabilidade. Elaborando uma pauta de prioridades globais, o bloco majoritário hegemônico poderia selecionar, dentre os múltiplos interesses que representa, os que mais correspondem, em cada oportunidade concreta, a um interesse efetivamente comum, consensualmente estabelecido.

Neste sentido, o Fome Zero, por exemplo, será capaz de transcender a etapa emergencial e consolidar as macro-políticas estruturantes da nova sociedade que sempre esteve no ideário petista?

Como organizar aparelhos privados de hegemonia (sociedade civil) que representem e compatibilizem os interesses dos diversos grupos sociais (igrejas, escolas, sindicatos, partidos políticos, movimentos populares meios de comunicação), de forma a dar cara e personalidade própria ao Governo Lula?

Estas são questões que nos remetem a um processo crescente de mobilização e discussão, algo que de certa forma desapareceu com o gozo geral em que vivemos com a ascensão de Lula e o do PT ao governo. Será que não seria hora de começarmos a nos mexer? De criar espaços de discussão onde quer que seja? Ou de ocupar os já existentes? Esse, aliás, é um deles que deve ser preservado e ampliado nos próximos anos.

Com a palavra todos nós, que sempre trabalhamos por outra sociedade diferente da que aí está


[1] O presente texto recupera teses e idéias contidas em Carlos Nélson Coutinho que, mesmo produzidas num contexto onde ainda não se vislumbrava o governo Lula, tornam-se atuais para o nosso debate.
[2] Docente da UFPB, médico sanitarista, mestre em ciências sociais e doutorando em educação popular. Filiado ao PT.

A EDUCAÇÃO POPULAR E A PROMOÇÃO DA SAÚDE NA CONCRETUDE DA PRAXIS DA ATENÇÃO PRIMÁRIA EM SAÚDE.

Lindemberg Medeiros de Araújo[1]

“Testemunhar a abertura aos outros, a disponibilidade curiosa à vida, a seus desafios, são saberes necessários à prática educativa”. (FREIRE, 1996)

A filosofia da atenção primária e do Programa Saúde da Família está talhada num conjunto de princípios que pregam uma organização que além de multiprofissional seja interdisciplinar, o que infelizmente ainda se constitui num objetivo a ser alcançado de fato. Em sendo assim, compreendo que as equipes de saúde da família só tirarão proveito da sua condição no momento em que os profissionais e a gestão municipal se disponham a trocar saberes, aprenderem a aprender uns com os outros, refletindo continuamente os objetivos e os resultados da sua prática. Conseguido esse intento, a organização interdisciplinar poderá ser assumida verdadeiramente, fazendo com que a prática de um profissional se reconstrua na prática do outro, transformando ambas no contexto em que estão inseridas, como almeja a filosofia que encerra a estratégia Saúde da Família. Igualmente se faz necessário que a gestão municipal compreenda e colabore para que esse processo se dê da melhor maneira possível. Isso assegurado parece ser possível pensar num processo semelhante e simultâneo em relação à população usuária, até então encarada apenas como objeto da prática do “programa”.

E um dos passos que a meu juízo poderá aproximar o PSF do seu desiderato é o desenvolvimento do raciocínio de que a atenção à saúde necessita de uma ação/intervenção intersetorial, baseada em critérios definidos pela biologia, pelo ambiente social e político, pela infraestrutura, pela economia; mas, também, pela educação e pela cultura, vale dizer pela educação popular. Um outro passo importante diz respeito ao desenvolvimento de um comportamento ao mesmo tempo coletivo e individual frente à população e à família, aí entendida pelo espectro dos seus vários problemas de vida e saúde. Comportamento dialógico, centrado em políticas saudáveis e em estratégias que problematizem a situação de saúde e definam ações que considerem a informação e a educação para o autocuidado.

Educação como uma reflexão coletiva e profunda sobre o sentido da uma atenção primária que supere a sua organização puramente assistencial e o seu caráter marcadamente curativo, algo que vem da prática de saúde tradicional. Educação como...

“fenômeno de produção e apropriação dos produtos culturais, expresso por um sistema aberto de ensino e aprendizagem, constituído de uma teoria de conhecimento referenciada na realidade, com metodologias (pedagogia) incentivadoras à participação e ao empoderamento das pessoas, com conteúdos e técnicas de avaliação processuais, permeados por uma base política estimuladora de transformações sociais e orientado por anseios humanos de liberdade, justiça, igualdade e felicidade”.[2]

É fundamental evoluir, fugir do modelo onde a construção da saúde está sempre representada pela ação coercitiva (não dialogal) do médico ou da equipe como um todo, especialmente quando esta reduz o seu horizonte às ações de recuperação da saúde entendendo-a como uma resultante apenas de ações dos profissionais de saúde. Por isso a necessidade de tecnologias de intervenção que sejam assistenciais sim, mas, ao mesmo tempo
sociais e educacionais nos seus sentidos mais amplos.

Enfim, um modelo de atenção que, para além da recuperação e da prevenção, esteja compromissado com a promoção da saúde, com a integralidade das ações, com a discriminação positiva representada pela prática da eqüidade e da descentralização do poder, através de uma soberana e pedagógica participação popular, traduzida na incorporação dos usuários como atores sociais envolvidos no processo e, portanto, com responsabilidades políticas e sanitárias em relação ao que está ao seu redor.

Neste sentido, é preciso caminhar, continuar tecendo a esperança de que é possível mudar concepções, inventar novas práticas a partir de um diálogo aberto e sincero. Afinal como nos ensina Paulo Freire,

“O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na história”. (FREIRE, 1996).

A propósito da idéia de diálogo, será necessário superar as muitas frustrações dos usuários dos serviços de saúde devido aos posicionamentos inadequados e incongruentes, tanto dos profissionais de saúde quanto das gestões municipais. Especificamente em relação aos primeiros, a experiência confirma aquilo já explicitado nos documentos oficiais do próprio PSF e da atenção primária em saúde. Ou seja, que...

“para lidar com a dinâmica da vida social das famílias assistidas e da própria comunidade, além de procedimentos tecnológicos específicos da área da saúde, a valorização dos diversos saberes e práticas contribui para uma abordagem mais integral e resolutiva” (BRASIL. MS, 2001).

Do ponto de vista técnico é mister reconhecer que os cursos universitários não formam profissionais com um perfil adequado ou que responda as necessidades da atenção primária e da equipe mínima do PSF. Continuam com um modelo de formação que aliena os formandos dos reais problemas da população, pois privilegiam o enfoque assistencial curativo centrado no hospital, na especialização precoce e na alta tecnologia como recurso diagnóstico ou terapêutico. Com isso deixam de lado uma série de questões que poderiam ser problematizadas durante o processo de capacitação profissional alargando a visão dos futuros profissionais na direção dos reais determinantes do processo saúde/doença.

Nada de contrário, em princípio, em relação à tecnologia. Esta será sempre bem vinda e deve ser utilizada em todos os níveis de atenção. Mas não se pode esquecer que o seu uso abusivo, como se comprova a todo o momento na realidade brasileira, e mesmo na internacional, encarece cada vez mais o ato médico[3], tornando-o inacessível para a maioria da população, especialmente a mais carente que utiliza apenas o setor público que, como é sabido, pelos mais variados motivos[4], não disponibiliza essa tecnologia na proporção das necessidades dos usuários dos serviços.

Por outro lado, considerando a formação humana dos profissionais não se pode deixar de ressaltar que faltam os bons exemplos de uma sociedade que, no geral, desestimula a fraternidade, a justiça e a ética; a tolerância, a generosidade, e a humildade; a convivência com a diferença e o crescimento democrático. O que impera mesmo é o individualismo, a competição, a desigualdade e a exclusão social das maiorias. Ou seja, faltam os fundamentos para o desenvolvimento da nossa humanidade.

Assim, não é de se estranhar que, consoante a sociedade que somos, também tenhamos uma escola autoritária, excludente, condicionadora, e reprodutora dos valores dominantes, uma escola que, controladora e acrítica, segue descomprometida com a transformação da realidade dos seus educandos e, portanto, incapaz de formar sujeitos fundados no amor, na solidariedade, na compaixão, na humildade e confiança nos homens. Sujeitos do diálogo que se faz na relação horizontal em que a confiança de um pólo no outro é conseqüência óbvia. Porém, como todos esses valores inexistem o que se impõe é a antidialogicidade da concepção “bancária” de educação. (FREIRE, 1987).

Não se pode estranhar igualmente que vivamos sob a égide de um Estado cujas políticas sociais não apostam no desenvolvimento da comunidade e na construção de sujeitos autônomos e emancipados. Quando muito propõe e executa políticas assistencialistas de fundo compensatório, com o fim único de aliviar as tensões sociais, como tem sido a história dos países capitalistas periféricos, entre os quais se inclui o Brasil, que levam a cabo políticas de fundo “neoliberal” alinhada aos “consensos” ditados pelos países centrais.

Assim, tomando-se como exemplo, a formação e a prática médica necessária à atenção primária, encontra-se o que parece ser um dos centros de maior tensão e um dos calcanhares mais nevrálgicos da estratégia Saúde da Família: o poder médico, especialmente quando este poder médico é colocado diante de novas relações interprofissionais, sociais e comunitárias que precisam advir. É nessa relação que, ao meu ver, ficam explicitados todos os limites, tensões, contradições e inseguranças, de um profissional que, na maioria das vezes, foi formado e acostumado a dar a primeira e a última palavra sobre a vida e a saúde das pessoas, sem se preocupar em compreender ou ver compreendida a dimensão social e humana de sua prática.

Na atenção primária do PSF esse mesmo profissional se vê diante da realidade de ter que dividir a sua ação; explicá-la, planejá-la com todos aqueles que viraram seus co-partícipes dentro de um novo processo de trabalho para o qual não está acostumado e para o qual não foi suficientemente formado. É, pois, aqui onde entendo se encontrar o grande desafio, a arena a ser transformada em terreno fértil para que floresçam novas possibilidades de acumulações para a prática desses profissionais e conseqüentemente da equipe de saúde como um todo.

Diante da construção que até então vim fazendo, é inevitável que nos deparemos com uma questão fundamental: a de que, do ponto de vista macro, os atuais modelos de sociedade, de escola e de políticas sociais não favorecem e até conspiram contra estratégias que visam a transformação da realidade. Porém, é preciso lembrar que essa realidade macro desfavorável, também guarda no seu interior inúmeras realidades micro com potencialidade para irem numa direção contrária, buscando uma outra modalidade de construção social e política.

Ademais, se a análise que acabo de fazer nos mostra uma supremacia, uma dominação do macro sobre o micro, é necessário que entendamos que macro e micro compõem uma relação dialética; e que na medida em que os muitos micros que conformam esse macro forem sendo transformados, será o macro mesmo que estaremos transformando.

Isto trazido para a nossa discussão central, instiga-me a ir compreendendo os limites, as tensões e as contradições da prática médica e trabalhando na perspectiva da acumulação e construção de uma práxis transformada e transformadora. E neste aspecto, uma postura teórica que poderá ser inspiradora da conformação dessa práxis médica é a adoção do diálogo como atitude metodológica.

Diálogo como abertura no outro e para o outro, como partilha e convivência de saberes que, extrapolando a tradicional relação médico/paciente e a unidade de saúde, leve o profissional a uma participação solidária na vida do seu outro, o cidadão usuário. Assim, poder-se-ia produzir a concomitância e o compartilhamento que gera novos saberes capazes de produzirem pequenas mudanças que estejam dentro da governabilidade dos atores em ação.

Desta mesma forma, os sujeitos da aprendizagem estariam indistintamente aprendendo a aprender, aprendendo a fazer e, com isso, vislumbrando novas competências profissionais, sociais e éticas para o profissional médico, para a equipe de saúde e, portanto, transformando as relações interprofissionais e comunitárias.

Estariam criando novas prospectivas e acumulações para a formação profissional necessária a esse novo modelo de atenção e formulando elementos para a construção coletiva de estratégias educacionais, com potencial para responder socialmente às insuficiências da atual formação profissional na área da saúde, especialmente em relação aos profissionais médicos, categoria ocupacional com maior dificuldade de adaptação à nova filosofia de atenção.

Nessa linha de raciocínio e de ação, o próprio trabalho de assistência teria condições de ser recriado e talvez melhor entendido tanto pela equipe quanto pela população, num autêntico movimento de educação popular. Assim, os levantamentos de dados qualitativos e quantitativos, primários e secundários, que identificam e qualificam a situação de saúde e a população usuária, poderiam ganhar novas cores e, quem sabe, captar e revelar elementos antes inimagináveis da subjetividade dos atores envolvidos. E esse avanço seria certamente revertido em favor do aprofundamento das relações e das trocas, num processo educativo em que todos se beneficiariam da experiência coletiva.

Ainda sobre possibilidade de uma práxis médica voltada para educação popular, postura que venho adotando no decorrer deste projeto, vale lembrar VASCONCELOS, (mimeo, s.d) referindo-se a Educação Popular no campo da saúde, quando detecta que atuando a partir de problemas de saúde específicos ou de questões ligadas ao funcionamento global dos serviços, a educação popular tem sido utilizada como uma estratégia de superação do grande fosso cultural existente entre os serviços de saúde e o saber denominado de científico, inclusive modificando a dinâmica de adoecimento e cura do mundo popular. É a partir desse diálogo que soluções vão sendo delineadas.

Tomando as palavras do autor:

“a educação popular é o saber que orienta nos difíceis caminhos, cheios de armadilhas, da ação pedagógica voltada para a apuração do sentir/pensar/agir dos setores subalternos para a construção de uma sociedade fundada na solidariedade, justiça e participação de todos”. [5]

Essa perspectiva que elege o diálogo como categoria metodológica fundamental é a que está na essência da teoria freiriana[6] que aqui se faz reconhecer na acumulação do autor e na representação que faz das relações dos profissionais de saúde com os movimentos sociais e populares.

Uma outra questão importante para ser incluída no processo e da qual já tratamos em outra parte deste projeto é a questão da promoção da saúde que pode ser explorada como um processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria da sua qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participação no controle do processo saúde doença e na busca de aspirações que identificadas se constituiriam em necessidades a serem satisfeitas, modificando favoravelmente o meio ambiente (físico e social) para que se atinja um estado, o mais completo, de bem estar bio-psico-social.

Portanto, caberia nesta ação o esquadrinhamento do território em todas as suas dimensões, tentando perceber ali como se expressam os fenômenos que interferem na vida e na saúde da população, que podem ser enfrentados em parte pela própria comunidade e em parte pelos poderes públicos que representam a gestão do Estado. Acredito que desse modo, educando, informando e tomando consciência de todos os lados que compõem as diversas questões relativas ao processo saúde/doença, poder-se-ia estar assumindo a atitude conseqüente de construir a saúde de uma forma integral e vencendo a visão reduzida de simplesmente tratar de doentes.

À guisa de conclusão deste texto e para realçar mais uma vez a categoria fundamental que muito poderá ajudar no processo de construção de uma práxis médica voltada para a educação popular, transcrevemos um trecho de FREIRE (1987) que reforça o poder indispensável do diálogo na construção de uma práxis intencional, criadora e com potencialidade para produzir soluções para os problemas humanos, aqui representados pelos que interferem na consecução do direito à saúde:

“Se o diálogo é o encontro dos homens para ser mais, não pode fazer-se na desesperança. Se os sujeitos do diálogo nada esperam do seu quefazer, já não pode haver diálogo. O seu encontro é vazio e estéril. É burocrático e fastidioso. (...) não há diálogo verdadeiro se não há nos sujeitos um pensar verdadeiro. Pensar crítico. Pensar que, não aceitando a dicotomia mundo-homens, reconhece entre eles uma inquebrantável solidariedade”. (FREIRE, 1987)

[1] Professor Assistente da Universidade Federal da Paraíba, Médico Sanitarista, Mestre em Ciências Sociais e Doutorando em Educação Popular.
[2] Aproximação conceitual construída pelas turmas Teoria em Educação Popular, História e Filosofia da Educação Popular, do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UFPB), em João Pessoa-PB e durante o Curso em Educação Popular, realizado pelo CEDAC (Centro de Ação Comunitária), com participação de educadores populares de várias regiões do Estado do Rio de Janeiro, na cidade do Rio de Janeiro. As disciplinas foram coordenadas pelos professores José Francisco de Melo Neto, Maria do Socorro Batista e Eymard Mourão Vasconcelos, tendo sido desenvolvidas durante o primeiro semestre letivo do ano de 2003.
[3] O processo de globalização e a situação da nossa economia no concerto do neoliberalismo só aprofundam este problema e trazem novas contradições e conflitos para o interior da prática médica, dado que as pressões tornam-se maiores, insuportáveis mesmo, no sentido do consumo tecnológico, muitas vezes em detrimento da inteligência clínica e do próprio estatuto científico.
[4] É importante arrolar as iniciativas “racionalizadoras” baseadas num raciocínio puramente econômico e financeiro e não no custo/benefício social. Por outro lado, é indisfarçável, até por razões históricas, o corte privatista e a promiscuidade de relações administrativas que permitem, ao arrepio da lei, que dirigentes e gestores do setor público sejam tirados, em muitas situações, do próprio setor privado, num claro conflito de interesses que só traz prejuízos para o setor público e benesses para o setor privado. Não podemos esquecer também o processo de corrupção, de fraudes e de desvio de verbas que já fizeram história no setor.
[5] Além do texto citado, indicamos duas outras obras do autor que se tornaram referência para os que estudam a saúde pela ótica da Educação Popular. Trata-se de Educação Popular nos Serviços de Saúde (1997) e Educação Popular e a Atenção à Saúde da Família (1999), ambas editadas pela HUCITEC.
[6]A teoria freiriana de educação popular pelo papel inovador e pioneiro, muito já contribuiu e continuará contribuindo com quem se der à tarefa de pensar práticas sociais e de saúde por esta ótica. Neste caso nos referimos especialmente à duas obras fundamentais que definem a essência da teoria original deste autor. FREIRE, P. – Educação Como Prática da Liberdade. 7ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977; e Pedagogia do Oprimido. 17ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987;