Lindemberg Medeiros de Araújo[1]
“Testemunhar a abertura aos outros, a disponibilidade curiosa à vida, a seus desafios, são saberes necessários à prática educativa”. (FREIRE, 1996)
A filosofia da atenção primária e do Programa Saúde da Família está talhada num conjunto de princípios que pregam uma organização que além de multiprofissional seja interdisciplinar, o que infelizmente ainda se constitui num objetivo a ser alcançado de fato. Em sendo assim, compreendo que as equipes de saúde da família só tirarão proveito da sua condição no momento em que os profissionais e a gestão municipal se disponham a trocar saberes, aprenderem a aprender uns com os outros, refletindo continuamente os objetivos e os resultados da sua prática. Conseguido esse intento, a organização interdisciplinar poderá ser assumida verdadeiramente, fazendo com que a prática de um profissional se reconstrua na prática do outro, transformando ambas no contexto em que estão inseridas, como almeja a filosofia que encerra a estratégia Saúde da Família. Igualmente se faz necessário que a gestão municipal compreenda e colabore para que esse processo se dê da melhor maneira possível. Isso assegurado parece ser possível pensar num processo semelhante e simultâneo em relação à população usuária, até então encarada apenas como objeto da prática do “programa”.
E um dos passos que a meu juízo poderá aproximar o PSF do seu desiderato é o desenvolvimento do raciocínio de que a atenção à saúde necessita de uma ação/intervenção intersetorial, baseada em critérios definidos pela biologia, pelo ambiente social e político, pela infraestrutura, pela economia; mas, também, pela educação e pela cultura, vale dizer pela educação popular. Um outro passo importante diz respeito ao desenvolvimento de um comportamento ao mesmo tempo coletivo e individual frente à população e à família, aí entendida pelo espectro dos seus vários problemas de vida e saúde. Comportamento dialógico, centrado em políticas saudáveis e em estratégias que problematizem a situação de saúde e definam ações que considerem a informação e a educação para o autocuidado.
Educação como uma reflexão coletiva e profunda sobre o sentido da uma atenção primária que supere a sua organização puramente assistencial e o seu caráter marcadamente curativo, algo que vem da prática de saúde tradicional. Educação como...
“fenômeno de produção e apropriação dos produtos culturais, expresso por um sistema aberto de ensino e aprendizagem, constituído de uma teoria de conhecimento referenciada na realidade, com metodologias (pedagogia) incentivadoras à participação e ao empoderamento das pessoas, com conteúdos e técnicas de avaliação processuais, permeados por uma base política estimuladora de transformações sociais e orientado por anseios humanos de liberdade, justiça, igualdade e felicidade”.[2]
É fundamental evoluir, fugir do modelo onde a construção da saúde está sempre representada pela ação coercitiva (não dialogal) do médico ou da equipe como um todo, especialmente quando esta reduz o seu horizonte às ações de recuperação da saúde entendendo-a como uma resultante apenas de ações dos profissionais de saúde. Por isso a necessidade de tecnologias de intervenção que sejam assistenciais sim, mas, ao mesmo tempo
sociais e educacionais nos seus sentidos mais amplos.
Enfim, um modelo de atenção que, para além da recuperação e da prevenção, esteja compromissado com a promoção da saúde, com a integralidade das ações, com a discriminação positiva representada pela prática da eqüidade e da descentralização do poder, através de uma soberana e pedagógica participação popular, traduzida na incorporação dos usuários como atores sociais envolvidos no processo e, portanto, com responsabilidades políticas e sanitárias em relação ao que está ao seu redor.
Neste sentido, é preciso caminhar, continuar tecendo a esperança de que é possível mudar concepções, inventar novas práticas a partir de um diálogo aberto e sincero. Afinal como nos ensina Paulo Freire,
“O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na história”. (FREIRE, 1996).
A propósito da idéia de diálogo, será necessário superar as muitas frustrações dos usuários dos serviços de saúde devido aos posicionamentos inadequados e incongruentes, tanto dos profissionais de saúde quanto das gestões municipais. Especificamente em relação aos primeiros, a experiência confirma aquilo já explicitado nos documentos oficiais do próprio PSF e da atenção primária em saúde. Ou seja, que...
“para lidar com a dinâmica da vida social das famílias assistidas e da própria comunidade, além de procedimentos tecnológicos específicos da área da saúde, a valorização dos diversos saberes e práticas contribui para uma abordagem mais integral e resolutiva” (BRASIL. MS, 2001).
Do ponto de vista técnico é mister reconhecer que os cursos universitários não formam profissionais com um perfil adequado ou que responda as necessidades da atenção primária e da equipe mínima do PSF. Continuam com um modelo de formação que aliena os formandos dos reais problemas da população, pois privilegiam o enfoque assistencial curativo centrado no hospital, na especialização precoce e na alta tecnologia como recurso diagnóstico ou terapêutico. Com isso deixam de lado uma série de questões que poderiam ser problematizadas durante o processo de capacitação profissional alargando a visão dos futuros profissionais na direção dos reais determinantes do processo saúde/doença.
Nada de contrário, em princípio, em relação à tecnologia. Esta será sempre bem vinda e deve ser utilizada em todos os níveis de atenção. Mas não se pode esquecer que o seu uso abusivo, como se comprova a todo o momento na realidade brasileira, e mesmo na internacional, encarece cada vez mais o ato médico[3], tornando-o inacessível para a maioria da população, especialmente a mais carente que utiliza apenas o setor público que, como é sabido, pelos mais variados motivos[4], não disponibiliza essa tecnologia na proporção das necessidades dos usuários dos serviços.
Por outro lado, considerando a formação humana dos profissionais não se pode deixar de ressaltar que faltam os bons exemplos de uma sociedade que, no geral, desestimula a fraternidade, a justiça e a ética; a tolerância, a generosidade, e a humildade; a convivência com a diferença e o crescimento democrático. O que impera mesmo é o individualismo, a competição, a desigualdade e a exclusão social das maiorias. Ou seja, faltam os fundamentos para o desenvolvimento da nossa humanidade.
Assim, não é de se estranhar que, consoante a sociedade que somos, também tenhamos uma escola autoritária, excludente, condicionadora, e reprodutora dos valores dominantes, uma escola que, controladora e acrítica, segue descomprometida com a transformação da realidade dos seus educandos e, portanto, incapaz de formar sujeitos fundados no amor, na solidariedade, na compaixão, na humildade e confiança nos homens. Sujeitos do diálogo que se faz na relação horizontal em que a confiança de um pólo no outro é conseqüência óbvia. Porém, como todos esses valores inexistem o que se impõe é a antidialogicidade da concepção “bancária” de educação. (FREIRE, 1987).
Não se pode estranhar igualmente que vivamos sob a égide de um Estado cujas políticas sociais não apostam no desenvolvimento da comunidade e na construção de sujeitos autônomos e emancipados. Quando muito propõe e executa políticas assistencialistas de fundo compensatório, com o fim único de aliviar as tensões sociais, como tem sido a história dos países capitalistas periféricos, entre os quais se inclui o Brasil, que levam a cabo políticas de fundo “neoliberal” alinhada aos “consensos” ditados pelos países centrais.
Assim, tomando-se como exemplo, a formação e a prática médica necessária à atenção primária, encontra-se o que parece ser um dos centros de maior tensão e um dos calcanhares mais nevrálgicos da estratégia Saúde da Família: o poder médico, especialmente quando este poder médico é colocado diante de novas relações interprofissionais, sociais e comunitárias que precisam advir. É nessa relação que, ao meu ver, ficam explicitados todos os limites, tensões, contradições e inseguranças, de um profissional que, na maioria das vezes, foi formado e acostumado a dar a primeira e a última palavra sobre a vida e a saúde das pessoas, sem se preocupar em compreender ou ver compreendida a dimensão social e humana de sua prática.
Na atenção primária do PSF esse mesmo profissional se vê diante da realidade de ter que dividir a sua ação; explicá-la, planejá-la com todos aqueles que viraram seus co-partícipes dentro de um novo processo de trabalho para o qual não está acostumado e para o qual não foi suficientemente formado. É, pois, aqui onde entendo se encontrar o grande desafio, a arena a ser transformada em terreno fértil para que floresçam novas possibilidades de acumulações para a prática desses profissionais e conseqüentemente da equipe de saúde como um todo.
Diante da construção que até então vim fazendo, é inevitável que nos deparemos com uma questão fundamental: a de que, do ponto de vista macro, os atuais modelos de sociedade, de escola e de políticas sociais não favorecem e até conspiram contra estratégias que visam a transformação da realidade. Porém, é preciso lembrar que essa realidade macro desfavorável, também guarda no seu interior inúmeras realidades micro com potencialidade para irem numa direção contrária, buscando uma outra modalidade de construção social e política.
Ademais, se a análise que acabo de fazer nos mostra uma supremacia, uma dominação do macro sobre o micro, é necessário que entendamos que macro e micro compõem uma relação dialética; e que na medida em que os muitos micros que conformam esse macro forem sendo transformados, será o macro mesmo que estaremos transformando.
Isto trazido para a nossa discussão central, instiga-me a ir compreendendo os limites, as tensões e as contradições da prática médica e trabalhando na perspectiva da acumulação e construção de uma práxis transformada e transformadora. E neste aspecto, uma postura teórica que poderá ser inspiradora da conformação dessa práxis médica é a adoção do diálogo como atitude metodológica.
Diálogo como abertura no outro e para o outro, como partilha e convivência de saberes que, extrapolando a tradicional relação médico/paciente e a unidade de saúde, leve o profissional a uma participação solidária na vida do seu outro, o cidadão usuário. Assim, poder-se-ia produzir a concomitância e o compartilhamento que gera novos saberes capazes de produzirem pequenas mudanças que estejam dentro da governabilidade dos atores em ação.
Desta mesma forma, os sujeitos da aprendizagem estariam indistintamente aprendendo a aprender, aprendendo a fazer e, com isso, vislumbrando novas competências profissionais, sociais e éticas para o profissional médico, para a equipe de saúde e, portanto, transformando as relações interprofissionais e comunitárias.
Estariam criando novas prospectivas e acumulações para a formação profissional necessária a esse novo modelo de atenção e formulando elementos para a construção coletiva de estratégias educacionais, com potencial para responder socialmente às insuficiências da atual formação profissional na área da saúde, especialmente em relação aos profissionais médicos, categoria ocupacional com maior dificuldade de adaptação à nova filosofia de atenção.
Nessa linha de raciocínio e de ação, o próprio trabalho de assistência teria condições de ser recriado e talvez melhor entendido tanto pela equipe quanto pela população, num autêntico movimento de educação popular. Assim, os levantamentos de dados qualitativos e quantitativos, primários e secundários, que identificam e qualificam a situação de saúde e a população usuária, poderiam ganhar novas cores e, quem sabe, captar e revelar elementos antes inimagináveis da subjetividade dos atores envolvidos. E esse avanço seria certamente revertido em favor do aprofundamento das relações e das trocas, num processo educativo em que todos se beneficiariam da experiência coletiva.
Ainda sobre possibilidade de uma práxis médica voltada para educação popular, postura que venho adotando no decorrer deste projeto, vale lembrar VASCONCELOS, (mimeo, s.d) referindo-se a Educação Popular no campo da saúde, quando detecta que atuando a partir de problemas de saúde específicos ou de questões ligadas ao funcionamento global dos serviços, a educação popular tem sido utilizada como uma estratégia de superação do grande fosso cultural existente entre os serviços de saúde e o saber denominado de científico, inclusive modificando a dinâmica de adoecimento e cura do mundo popular. É a partir desse diálogo que soluções vão sendo delineadas.
Tomando as palavras do autor:
“a educação popular é o saber que orienta nos difíceis caminhos, cheios de armadilhas, da ação pedagógica voltada para a apuração do sentir/pensar/agir dos setores subalternos para a construção de uma sociedade fundada na solidariedade, justiça e participação de todos”. [5]
Essa perspectiva que elege o diálogo como categoria metodológica fundamental é a que está na essência da teoria freiriana[6] que aqui se faz reconhecer na acumulação do autor e na representação que faz das relações dos profissionais de saúde com os movimentos sociais e populares.
Uma outra questão importante para ser incluída no processo e da qual já tratamos em outra parte deste projeto é a questão da promoção da saúde que pode ser explorada como um processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria da sua qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participação no controle do processo saúde doença e na busca de aspirações que identificadas se constituiriam em necessidades a serem satisfeitas, modificando favoravelmente o meio ambiente (físico e social) para que se atinja um estado, o mais completo, de bem estar bio-psico-social.
Portanto, caberia nesta ação o esquadrinhamento do território em todas as suas dimensões, tentando perceber ali como se expressam os fenômenos que interferem na vida e na saúde da população, que podem ser enfrentados em parte pela própria comunidade e em parte pelos poderes públicos que representam a gestão do Estado. Acredito que desse modo, educando, informando e tomando consciência de todos os lados que compõem as diversas questões relativas ao processo saúde/doença, poder-se-ia estar assumindo a atitude conseqüente de construir a saúde de uma forma integral e vencendo a visão reduzida de simplesmente tratar de doentes.
À guisa de conclusão deste texto e para realçar mais uma vez a categoria fundamental que muito poderá ajudar no processo de construção de uma práxis médica voltada para a educação popular, transcrevemos um trecho de FREIRE (1987) que reforça o poder indispensável do diálogo na construção de uma práxis intencional, criadora e com potencialidade para produzir soluções para os problemas humanos, aqui representados pelos que interferem na consecução do direito à saúde:
“Se o diálogo é o encontro dos homens para ser mais, não pode fazer-se na desesperança. Se os sujeitos do diálogo nada esperam do seu quefazer, já não pode haver diálogo. O seu encontro é vazio e estéril. É burocrático e fastidioso. (...) não há diálogo verdadeiro se não há nos sujeitos um pensar verdadeiro. Pensar crítico. Pensar que, não aceitando a dicotomia mundo-homens, reconhece entre eles uma inquebrantável solidariedade”. (FREIRE, 1987)
[1] Professor Assistente da Universidade Federal da Paraíba, Médico Sanitarista, Mestre em Ciências Sociais e Doutorando em Educação Popular.
[2] Aproximação conceitual construída pelas turmas Teoria em Educação Popular, História e Filosofia da Educação Popular, do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UFPB), em João Pessoa-PB e durante o Curso em Educação Popular, realizado pelo CEDAC (Centro de Ação Comunitária), com participação de educadores populares de várias regiões do Estado do Rio de Janeiro, na cidade do Rio de Janeiro. As disciplinas foram coordenadas pelos professores José Francisco de Melo Neto, Maria do Socorro Batista e Eymard Mourão Vasconcelos, tendo sido desenvolvidas durante o primeiro semestre letivo do ano de 2003.
[3] O processo de globalização e a situação da nossa economia no concerto do neoliberalismo só aprofundam este problema e trazem novas contradições e conflitos para o interior da prática médica, dado que as pressões tornam-se maiores, insuportáveis mesmo, no sentido do consumo tecnológico, muitas vezes em detrimento da inteligência clínica e do próprio estatuto científico.
[4] É importante arrolar as iniciativas “racionalizadoras” baseadas num raciocínio puramente econômico e financeiro e não no custo/benefício social. Por outro lado, é indisfarçável, até por razões históricas, o corte privatista e a promiscuidade de relações administrativas que permitem, ao arrepio da lei, que dirigentes e gestores do setor público sejam tirados, em muitas situações, do próprio setor privado, num claro conflito de interesses que só traz prejuízos para o setor público e benesses para o setor privado. Não podemos esquecer também o processo de corrupção, de fraudes e de desvio de verbas que já fizeram história no setor.
[5] Além do texto citado, indicamos duas outras obras do autor que se tornaram referência para os que estudam a saúde pela ótica da Educação Popular. Trata-se de Educação Popular nos Serviços de Saúde (1997) e Educação Popular e a Atenção à Saúde da Família (1999), ambas editadas pela HUCITEC.
[6]A teoria freiriana de educação popular pelo papel inovador e pioneiro, muito já contribuiu e continuará contribuindo com quem se der à tarefa de pensar práticas sociais e de saúde por esta ótica. Neste caso nos referimos especialmente à duas obras fundamentais que definem a essência da teoria original deste autor. FREIRE, P. – Educação Como Prática da Liberdade. 7ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977; e Pedagogia do Oprimido. 17ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987;
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