quarta-feira, 12 de julho de 2006

NOTAS SOBRE A REPRESENTAÇÃO DE INTERESSES, FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS E HEGEMONIA, NO GOVERNO LULA[1]

Lindemberg Medeiros de Araújo[2]

Quando falamos de política, falamos em grande medida de representação de interesses e, por conseguinte, de formulação de políticas que implementam ou bloqueiam tais interesses. A questão da representação de interesses não é nova e está presente na teoria política desde Aristóteles, que distinguia o bom e o mau governo em função dos interesses que este representava. Na medida que esse governo representasse o interesse comum seria um bom governo, um governo legítimo, independentemente se se tratava do governo de um, de poucos ou muitos.

Não é demais lembrar que essa noção de “interesse comum” há muito desapareceu, especialmente no pensamento moderno, de corte liberal. Rousseau foi o último a defendê-lo explicitamente dentro de uma tradição democrática e radical. Manteve-se, porém central a noção de interesse, enquanto concepção individualista “materialista” da sociedade (geralmente sinônimo de benefício material dentro de uma razão calculadora). O fato é que essa noção de interesse evoluiu, atravessou o tempo e se manteve viva em todas as fases da evolução histórica da teoria de Estado absolutista, burguês, liberal/capitalista, socialista, neoliberal.

Destas considerações iniciais podemos evoluir para, pelo menos, três questões básicas e fundamentais, que podem ser desdobradas, e em torno das quais pode girar a reflexão que ora queremos fazer do primeiro ano do governo Lula:

1. Como e quais interesses vêm sendo representados no governo comandado pelo PT?
2.
3. De quem são os interesses representados?
4.
5. Qual é a justificação para representar tais interesses? Será que poderíamos falar de uma hegemonia petista?
6.
As duas primeiras questões, como podemos ver, estão ligadas à estrutura e a natureza do Estado e da sua formulação de políticas, enquanto a terceira questão envolve o problema de legitimidade (melhor seria dizer de hegemonia) política do governo.

Caberia, neste caso, primeiro averiguar o que mudou ou se algo mudou no Estado brasileiro com a subida ao governo da coalizão de forças hegemonizada (talvez fosse melhor dizer administrada) pelo PT. A resposta parece clara e simples: nada ou quase nada mudou. Trocamos a direção política do governo. Mas, mudar o Estado será uma tarefa bem mais complexa e demorada que demanda (demandará) várias reformas, entre elas a política e a do judiciário, o que dependerá da nossa capacidade de construir uma hegemonia suficientemente firme e duradora para a efetivação do objetivo. Isso exige ainda uma reforma ética. Como vemos não é/será nada fácil.

Assim a questão atual, se aqui recuperamos o pensamento de GRAMSCI, é a de como compatibilizar a pluralidade de interesses coletivos hoje presente no cenário político social brasileiro – uma vez que a política real não é obra das maiorias, mas, sim de várias pequenas elites representativas de múltiplos interesses. As maiorias, na prática, foram historicamente alienadas do processo de formulação e representação de interesses pelo pensamento e pela ação liberal capitalista que tratou (e trata ainda) de exorcizar qualquer fantasma das maiorias sob o pretexto que elas não são estáveis, pois são obstaculizadas pela fragmentação de interesses e pela apatia generalizada.

Tentando de alguma forma dar respostas mínimas aos problemas e as pressões sociais, os estados capitalistas, especialmente os europeus, até a década passada atuavam dentro de um padrão de políticas sociais compensatórias conhecidas como Welfare State (Estado de Bem Estar Social), política que a partir da década de 90 do último século foi abandonada em favor do estado mínimo neoliberal.

Em termos mais recentes e considerando a questão das políticas sociais, a teoria marxista não desqualifica inteiramente o diagnóstico conservador da crise do Welfare State. Reconhece que enquanto se mantiver o domínio da lógica capitalista, a ampliação do pluralismo corporativista conduz efetivamente a uma “crise fiscal do Estado” e, em decorrência, a um “déficit de legitimação”. Mas a solução apontada pelos marxistas para a crise precisa ser, naturalmente, bem diversa daquela apontada pelo liberal capitalismo. E nesse caso, é hora de avaliarmos concreta e conseqüentemente a nossa política econômica. Aonde ela poderá realmente nos levar? Que objetivos serão conseguidos? Quem serão os que realizarão seus interesses com essa política? Que alternativas podemos apontar?

Desenvolvendo as reflexões de GRAMSCI, Pietro Ingrao, por exemplo, pensa que a solução para os males do corporativismo capitalista reside na elaboração de um novo tipo de hegemonia que se articule organicamente com o pluralismo, que considera como um fenômeno ineliminável das complexas sociedades modernas.

Considerando essa posição, diria que essa nova concepção de hegemonia implica a criação de blocos majoritários que se articulem em torno de questões de abrangência nacional (como saúde e educação, por exemplo) elaborando propostas globais de reforma que transcendam (mas sem ignorar) os interesses meramente corporativos dos múltiplos segmentos envolvidos.

Essas reformas globais – cuja efetivação pode ser progressiva e não simultânea, e cujos atores não precisam ser rigorosamente os mesmos em todos os casos – deveriam apontar em conjunto, no sentido de um reordenamento da sociedade, de uma superação da lógica capitalista.

A estrutura institucional que prepara e consolida essa nova hegemonia das classes subalternas é concebida como uma “democracia de massas” (em contraste com o liberal-corporativismo da proposta pluralista); e sua estratégia pode ser definida como um “reformismo revolucionário” (um objetivo revolucionário, superador do capitalismo, que se explicita por meio de reformas graduais).

Nessa nova concepção neogramsciana de hegemonia, torna-se possível conservar o pluralismo da sociedade civil e, ao mesmo tempo, evitar o corporativismo selvagem que desemboca na ingovernabilidade. Elaborando uma pauta de prioridades globais, o bloco majoritário hegemônico poderia selecionar, dentre os múltiplos interesses que representa, os que mais correspondem, em cada oportunidade concreta, a um interesse efetivamente comum, consensualmente estabelecido.

Neste sentido, o Fome Zero, por exemplo, será capaz de transcender a etapa emergencial e consolidar as macro-políticas estruturantes da nova sociedade que sempre esteve no ideário petista?

Como organizar aparelhos privados de hegemonia (sociedade civil) que representem e compatibilizem os interesses dos diversos grupos sociais (igrejas, escolas, sindicatos, partidos políticos, movimentos populares meios de comunicação), de forma a dar cara e personalidade própria ao Governo Lula?

Estas são questões que nos remetem a um processo crescente de mobilização e discussão, algo que de certa forma desapareceu com o gozo geral em que vivemos com a ascensão de Lula e o do PT ao governo. Será que não seria hora de começarmos a nos mexer? De criar espaços de discussão onde quer que seja? Ou de ocupar os já existentes? Esse, aliás, é um deles que deve ser preservado e ampliado nos próximos anos.

Com a palavra todos nós, que sempre trabalhamos por outra sociedade diferente da que aí está


[1] O presente texto recupera teses e idéias contidas em Carlos Nélson Coutinho que, mesmo produzidas num contexto onde ainda não se vislumbrava o governo Lula, tornam-se atuais para o nosso debate.
[2] Docente da UFPB, médico sanitarista, mestre em ciências sociais e doutorando em educação popular. Filiado ao PT.

A EDUCAÇÃO POPULAR E A PROMOÇÃO DA SAÚDE NA CONCRETUDE DA PRAXIS DA ATENÇÃO PRIMÁRIA EM SAÚDE.

Lindemberg Medeiros de Araújo[1]

“Testemunhar a abertura aos outros, a disponibilidade curiosa à vida, a seus desafios, são saberes necessários à prática educativa”. (FREIRE, 1996)

A filosofia da atenção primária e do Programa Saúde da Família está talhada num conjunto de princípios que pregam uma organização que além de multiprofissional seja interdisciplinar, o que infelizmente ainda se constitui num objetivo a ser alcançado de fato. Em sendo assim, compreendo que as equipes de saúde da família só tirarão proveito da sua condição no momento em que os profissionais e a gestão municipal se disponham a trocar saberes, aprenderem a aprender uns com os outros, refletindo continuamente os objetivos e os resultados da sua prática. Conseguido esse intento, a organização interdisciplinar poderá ser assumida verdadeiramente, fazendo com que a prática de um profissional se reconstrua na prática do outro, transformando ambas no contexto em que estão inseridas, como almeja a filosofia que encerra a estratégia Saúde da Família. Igualmente se faz necessário que a gestão municipal compreenda e colabore para que esse processo se dê da melhor maneira possível. Isso assegurado parece ser possível pensar num processo semelhante e simultâneo em relação à população usuária, até então encarada apenas como objeto da prática do “programa”.

E um dos passos que a meu juízo poderá aproximar o PSF do seu desiderato é o desenvolvimento do raciocínio de que a atenção à saúde necessita de uma ação/intervenção intersetorial, baseada em critérios definidos pela biologia, pelo ambiente social e político, pela infraestrutura, pela economia; mas, também, pela educação e pela cultura, vale dizer pela educação popular. Um outro passo importante diz respeito ao desenvolvimento de um comportamento ao mesmo tempo coletivo e individual frente à população e à família, aí entendida pelo espectro dos seus vários problemas de vida e saúde. Comportamento dialógico, centrado em políticas saudáveis e em estratégias que problematizem a situação de saúde e definam ações que considerem a informação e a educação para o autocuidado.

Educação como uma reflexão coletiva e profunda sobre o sentido da uma atenção primária que supere a sua organização puramente assistencial e o seu caráter marcadamente curativo, algo que vem da prática de saúde tradicional. Educação como...

“fenômeno de produção e apropriação dos produtos culturais, expresso por um sistema aberto de ensino e aprendizagem, constituído de uma teoria de conhecimento referenciada na realidade, com metodologias (pedagogia) incentivadoras à participação e ao empoderamento das pessoas, com conteúdos e técnicas de avaliação processuais, permeados por uma base política estimuladora de transformações sociais e orientado por anseios humanos de liberdade, justiça, igualdade e felicidade”.[2]

É fundamental evoluir, fugir do modelo onde a construção da saúde está sempre representada pela ação coercitiva (não dialogal) do médico ou da equipe como um todo, especialmente quando esta reduz o seu horizonte às ações de recuperação da saúde entendendo-a como uma resultante apenas de ações dos profissionais de saúde. Por isso a necessidade de tecnologias de intervenção que sejam assistenciais sim, mas, ao mesmo tempo
sociais e educacionais nos seus sentidos mais amplos.

Enfim, um modelo de atenção que, para além da recuperação e da prevenção, esteja compromissado com a promoção da saúde, com a integralidade das ações, com a discriminação positiva representada pela prática da eqüidade e da descentralização do poder, através de uma soberana e pedagógica participação popular, traduzida na incorporação dos usuários como atores sociais envolvidos no processo e, portanto, com responsabilidades políticas e sanitárias em relação ao que está ao seu redor.

Neste sentido, é preciso caminhar, continuar tecendo a esperança de que é possível mudar concepções, inventar novas práticas a partir de um diálogo aberto e sincero. Afinal como nos ensina Paulo Freire,

“O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na história”. (FREIRE, 1996).

A propósito da idéia de diálogo, será necessário superar as muitas frustrações dos usuários dos serviços de saúde devido aos posicionamentos inadequados e incongruentes, tanto dos profissionais de saúde quanto das gestões municipais. Especificamente em relação aos primeiros, a experiência confirma aquilo já explicitado nos documentos oficiais do próprio PSF e da atenção primária em saúde. Ou seja, que...

“para lidar com a dinâmica da vida social das famílias assistidas e da própria comunidade, além de procedimentos tecnológicos específicos da área da saúde, a valorização dos diversos saberes e práticas contribui para uma abordagem mais integral e resolutiva” (BRASIL. MS, 2001).

Do ponto de vista técnico é mister reconhecer que os cursos universitários não formam profissionais com um perfil adequado ou que responda as necessidades da atenção primária e da equipe mínima do PSF. Continuam com um modelo de formação que aliena os formandos dos reais problemas da população, pois privilegiam o enfoque assistencial curativo centrado no hospital, na especialização precoce e na alta tecnologia como recurso diagnóstico ou terapêutico. Com isso deixam de lado uma série de questões que poderiam ser problematizadas durante o processo de capacitação profissional alargando a visão dos futuros profissionais na direção dos reais determinantes do processo saúde/doença.

Nada de contrário, em princípio, em relação à tecnologia. Esta será sempre bem vinda e deve ser utilizada em todos os níveis de atenção. Mas não se pode esquecer que o seu uso abusivo, como se comprova a todo o momento na realidade brasileira, e mesmo na internacional, encarece cada vez mais o ato médico[3], tornando-o inacessível para a maioria da população, especialmente a mais carente que utiliza apenas o setor público que, como é sabido, pelos mais variados motivos[4], não disponibiliza essa tecnologia na proporção das necessidades dos usuários dos serviços.

Por outro lado, considerando a formação humana dos profissionais não se pode deixar de ressaltar que faltam os bons exemplos de uma sociedade que, no geral, desestimula a fraternidade, a justiça e a ética; a tolerância, a generosidade, e a humildade; a convivência com a diferença e o crescimento democrático. O que impera mesmo é o individualismo, a competição, a desigualdade e a exclusão social das maiorias. Ou seja, faltam os fundamentos para o desenvolvimento da nossa humanidade.

Assim, não é de se estranhar que, consoante a sociedade que somos, também tenhamos uma escola autoritária, excludente, condicionadora, e reprodutora dos valores dominantes, uma escola que, controladora e acrítica, segue descomprometida com a transformação da realidade dos seus educandos e, portanto, incapaz de formar sujeitos fundados no amor, na solidariedade, na compaixão, na humildade e confiança nos homens. Sujeitos do diálogo que se faz na relação horizontal em que a confiança de um pólo no outro é conseqüência óbvia. Porém, como todos esses valores inexistem o que se impõe é a antidialogicidade da concepção “bancária” de educação. (FREIRE, 1987).

Não se pode estranhar igualmente que vivamos sob a égide de um Estado cujas políticas sociais não apostam no desenvolvimento da comunidade e na construção de sujeitos autônomos e emancipados. Quando muito propõe e executa políticas assistencialistas de fundo compensatório, com o fim único de aliviar as tensões sociais, como tem sido a história dos países capitalistas periféricos, entre os quais se inclui o Brasil, que levam a cabo políticas de fundo “neoliberal” alinhada aos “consensos” ditados pelos países centrais.

Assim, tomando-se como exemplo, a formação e a prática médica necessária à atenção primária, encontra-se o que parece ser um dos centros de maior tensão e um dos calcanhares mais nevrálgicos da estratégia Saúde da Família: o poder médico, especialmente quando este poder médico é colocado diante de novas relações interprofissionais, sociais e comunitárias que precisam advir. É nessa relação que, ao meu ver, ficam explicitados todos os limites, tensões, contradições e inseguranças, de um profissional que, na maioria das vezes, foi formado e acostumado a dar a primeira e a última palavra sobre a vida e a saúde das pessoas, sem se preocupar em compreender ou ver compreendida a dimensão social e humana de sua prática.

Na atenção primária do PSF esse mesmo profissional se vê diante da realidade de ter que dividir a sua ação; explicá-la, planejá-la com todos aqueles que viraram seus co-partícipes dentro de um novo processo de trabalho para o qual não está acostumado e para o qual não foi suficientemente formado. É, pois, aqui onde entendo se encontrar o grande desafio, a arena a ser transformada em terreno fértil para que floresçam novas possibilidades de acumulações para a prática desses profissionais e conseqüentemente da equipe de saúde como um todo.

Diante da construção que até então vim fazendo, é inevitável que nos deparemos com uma questão fundamental: a de que, do ponto de vista macro, os atuais modelos de sociedade, de escola e de políticas sociais não favorecem e até conspiram contra estratégias que visam a transformação da realidade. Porém, é preciso lembrar que essa realidade macro desfavorável, também guarda no seu interior inúmeras realidades micro com potencialidade para irem numa direção contrária, buscando uma outra modalidade de construção social e política.

Ademais, se a análise que acabo de fazer nos mostra uma supremacia, uma dominação do macro sobre o micro, é necessário que entendamos que macro e micro compõem uma relação dialética; e que na medida em que os muitos micros que conformam esse macro forem sendo transformados, será o macro mesmo que estaremos transformando.

Isto trazido para a nossa discussão central, instiga-me a ir compreendendo os limites, as tensões e as contradições da prática médica e trabalhando na perspectiva da acumulação e construção de uma práxis transformada e transformadora. E neste aspecto, uma postura teórica que poderá ser inspiradora da conformação dessa práxis médica é a adoção do diálogo como atitude metodológica.

Diálogo como abertura no outro e para o outro, como partilha e convivência de saberes que, extrapolando a tradicional relação médico/paciente e a unidade de saúde, leve o profissional a uma participação solidária na vida do seu outro, o cidadão usuário. Assim, poder-se-ia produzir a concomitância e o compartilhamento que gera novos saberes capazes de produzirem pequenas mudanças que estejam dentro da governabilidade dos atores em ação.

Desta mesma forma, os sujeitos da aprendizagem estariam indistintamente aprendendo a aprender, aprendendo a fazer e, com isso, vislumbrando novas competências profissionais, sociais e éticas para o profissional médico, para a equipe de saúde e, portanto, transformando as relações interprofissionais e comunitárias.

Estariam criando novas prospectivas e acumulações para a formação profissional necessária a esse novo modelo de atenção e formulando elementos para a construção coletiva de estratégias educacionais, com potencial para responder socialmente às insuficiências da atual formação profissional na área da saúde, especialmente em relação aos profissionais médicos, categoria ocupacional com maior dificuldade de adaptação à nova filosofia de atenção.

Nessa linha de raciocínio e de ação, o próprio trabalho de assistência teria condições de ser recriado e talvez melhor entendido tanto pela equipe quanto pela população, num autêntico movimento de educação popular. Assim, os levantamentos de dados qualitativos e quantitativos, primários e secundários, que identificam e qualificam a situação de saúde e a população usuária, poderiam ganhar novas cores e, quem sabe, captar e revelar elementos antes inimagináveis da subjetividade dos atores envolvidos. E esse avanço seria certamente revertido em favor do aprofundamento das relações e das trocas, num processo educativo em que todos se beneficiariam da experiência coletiva.

Ainda sobre possibilidade de uma práxis médica voltada para educação popular, postura que venho adotando no decorrer deste projeto, vale lembrar VASCONCELOS, (mimeo, s.d) referindo-se a Educação Popular no campo da saúde, quando detecta que atuando a partir de problemas de saúde específicos ou de questões ligadas ao funcionamento global dos serviços, a educação popular tem sido utilizada como uma estratégia de superação do grande fosso cultural existente entre os serviços de saúde e o saber denominado de científico, inclusive modificando a dinâmica de adoecimento e cura do mundo popular. É a partir desse diálogo que soluções vão sendo delineadas.

Tomando as palavras do autor:

“a educação popular é o saber que orienta nos difíceis caminhos, cheios de armadilhas, da ação pedagógica voltada para a apuração do sentir/pensar/agir dos setores subalternos para a construção de uma sociedade fundada na solidariedade, justiça e participação de todos”. [5]

Essa perspectiva que elege o diálogo como categoria metodológica fundamental é a que está na essência da teoria freiriana[6] que aqui se faz reconhecer na acumulação do autor e na representação que faz das relações dos profissionais de saúde com os movimentos sociais e populares.

Uma outra questão importante para ser incluída no processo e da qual já tratamos em outra parte deste projeto é a questão da promoção da saúde que pode ser explorada como um processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria da sua qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participação no controle do processo saúde doença e na busca de aspirações que identificadas se constituiriam em necessidades a serem satisfeitas, modificando favoravelmente o meio ambiente (físico e social) para que se atinja um estado, o mais completo, de bem estar bio-psico-social.

Portanto, caberia nesta ação o esquadrinhamento do território em todas as suas dimensões, tentando perceber ali como se expressam os fenômenos que interferem na vida e na saúde da população, que podem ser enfrentados em parte pela própria comunidade e em parte pelos poderes públicos que representam a gestão do Estado. Acredito que desse modo, educando, informando e tomando consciência de todos os lados que compõem as diversas questões relativas ao processo saúde/doença, poder-se-ia estar assumindo a atitude conseqüente de construir a saúde de uma forma integral e vencendo a visão reduzida de simplesmente tratar de doentes.

À guisa de conclusão deste texto e para realçar mais uma vez a categoria fundamental que muito poderá ajudar no processo de construção de uma práxis médica voltada para a educação popular, transcrevemos um trecho de FREIRE (1987) que reforça o poder indispensável do diálogo na construção de uma práxis intencional, criadora e com potencialidade para produzir soluções para os problemas humanos, aqui representados pelos que interferem na consecução do direito à saúde:

“Se o diálogo é o encontro dos homens para ser mais, não pode fazer-se na desesperança. Se os sujeitos do diálogo nada esperam do seu quefazer, já não pode haver diálogo. O seu encontro é vazio e estéril. É burocrático e fastidioso. (...) não há diálogo verdadeiro se não há nos sujeitos um pensar verdadeiro. Pensar crítico. Pensar que, não aceitando a dicotomia mundo-homens, reconhece entre eles uma inquebrantável solidariedade”. (FREIRE, 1987)

[1] Professor Assistente da Universidade Federal da Paraíba, Médico Sanitarista, Mestre em Ciências Sociais e Doutorando em Educação Popular.
[2] Aproximação conceitual construída pelas turmas Teoria em Educação Popular, História e Filosofia da Educação Popular, do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UFPB), em João Pessoa-PB e durante o Curso em Educação Popular, realizado pelo CEDAC (Centro de Ação Comunitária), com participação de educadores populares de várias regiões do Estado do Rio de Janeiro, na cidade do Rio de Janeiro. As disciplinas foram coordenadas pelos professores José Francisco de Melo Neto, Maria do Socorro Batista e Eymard Mourão Vasconcelos, tendo sido desenvolvidas durante o primeiro semestre letivo do ano de 2003.
[3] O processo de globalização e a situação da nossa economia no concerto do neoliberalismo só aprofundam este problema e trazem novas contradições e conflitos para o interior da prática médica, dado que as pressões tornam-se maiores, insuportáveis mesmo, no sentido do consumo tecnológico, muitas vezes em detrimento da inteligência clínica e do próprio estatuto científico.
[4] É importante arrolar as iniciativas “racionalizadoras” baseadas num raciocínio puramente econômico e financeiro e não no custo/benefício social. Por outro lado, é indisfarçável, até por razões históricas, o corte privatista e a promiscuidade de relações administrativas que permitem, ao arrepio da lei, que dirigentes e gestores do setor público sejam tirados, em muitas situações, do próprio setor privado, num claro conflito de interesses que só traz prejuízos para o setor público e benesses para o setor privado. Não podemos esquecer também o processo de corrupção, de fraudes e de desvio de verbas que já fizeram história no setor.
[5] Além do texto citado, indicamos duas outras obras do autor que se tornaram referência para os que estudam a saúde pela ótica da Educação Popular. Trata-se de Educação Popular nos Serviços de Saúde (1997) e Educação Popular e a Atenção à Saúde da Família (1999), ambas editadas pela HUCITEC.
[6]A teoria freiriana de educação popular pelo papel inovador e pioneiro, muito já contribuiu e continuará contribuindo com quem se der à tarefa de pensar práticas sociais e de saúde por esta ótica. Neste caso nos referimos especialmente à duas obras fundamentais que definem a essência da teoria original deste autor. FREIRE, P. – Educação Como Prática da Liberdade. 7ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977; e Pedagogia do Oprimido. 17ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987;

sexta-feira, 7 de julho de 2006

O desafio da integralidade no contexto da saúde e do Sistema Único de Saúde

Lindemberg Medeiros de Araújo[1]

A integralidade é, será sempre, um objetivo da atenção à saúde. Um horizonte a ser perseguido quando considerado o Sistema Único de Saúde (SUS) e a busca de sua realização plena. Talvez por isso, para se chegar a uma noção mais profunda sobre o seu significado seja aconselhável que se parta de dois outros conceitos que lhe parecem balizadores: o de processo saúde-doença e o de necessidades de saúde.

Processo saúde-doença aqui deve ser compreendido dentro da tradição da medicina social latino americana, ou seja, como um processo social que possui determinantes e condicionantes sócio-econômicos, político-sociais, sócio-culturais e ambientais, pois, foi a partir dessa compreensão de determinantes e condicionantes que se pôde chegar a uma definição, talvez a mais acabada:

“Por processo saúde doença da coletividade deve ser entendido o modo específico pelo qual ocorre, nos grupos, o processo biológico de desgaste e reprodução, destacando como momentos particulares a presença de um funcionamento biológico diferente, com conseqüências para o desenvolvimento regular das atividades cotidianas, isto é, o surgimento da doença (...) modo como o homem se apropria da natureza em um dado momento, apropriação que se realiza por meio do processo de trabalho baseado em determinado desenvolvimento das forças produtivas e relações sociais de produção” (LAURELL, 1983)[2]

Por essas definições pode-se concluir que os homens são, a um só tempo, corpos biológicos e corpos sociais e que a dupla determinação biológica e social da saúde-doença tem um caráter histórico de reprodução onde o padrão social de reprodução biológica determina o marco dentro do qual a doença é gerada.

Necessidade de saúde, por seu turno, pode ser definida como um conjunto de atributos que, presentes ou ausentes na vida das pessoas e das coletividades, influencia direta ou indiretamente no seu estado de saúde. Nessa perspectiva as necessidades de saúde dependem: a) das condições de vida das pessoas ou coletividades; b) do acesso às tecnologias que melhoram ou prolongam a vida; c) do vínculo afetivo efetivo existente entre os usuários de ações e serviços e as equipes ou profissionais de saúde; e d) do grau de autonomia de cada pessoa no seu modo de conduzir a vida[3].

Quando se faz referencia a condições de vida, na verdade se está querendo argumentar que estas condições podem ser, e normalmente o são, muito diversas; e que esta diversidade gera distintos modos de vida que por sua vez se traduzem em diferentes necessidades de saúde. Isso tem um claro rebatimento, por exemplo, sobre a necessidade de acesso a serviços e ações de saúde e, assim, às tecnologias que melhoram a saúde e prolongam a vida. Neste caso é importante reconhecer que o valor de uso de cada tecnologia é determinado pela necessidade de cada pessoa, em cada momento. As tecnologias aqui referidas podem ser tanto as “duras”, ou seja, as que se baseiam nos processos técnicos específicos das ciências físicas e naturais – que produzem máquinas e equipamentos que são utilizados na assistência direta a quem delas necessitar em algum momento ou lugar do sistema de saúde – quanto às tecnologias ditas “leves” que são aquelas produzidas através dos processos sociais protagonizados por expressões das ciências humanas. (CECÍLIO, 2001, op.cit.)

Sobre a questão do vínculo afetivo efetivo, se quer referir àquele que se baseia sempre na relação contínua, pessoal e calorosa entre os atores que se encontram na cena própria dos cuidados em saúde na convivência e na sensibilidade que, juntas, são capazes de construir relações conscientes, críticas; mas ao mesmo tempo pacíficas, porque construídas através do diálogo. Diálogo como abertura respeitosa ao outro e no outro, como síntese do eu e do tu na disponibilidade curiosa à vida, no ser mais. Diálogo que só existe verdadeiramente na relação horizontal, fundada na confiança mútua, na fé nos homens, no amor, na humildade, na curiosidade criativa diante da inconclusão do mundo, da nossa própria inconclusão. Diálogo como aposta na solidariedade, na partilha, na ética e na fraternidade entre os homens; no compromisso inquebrantável com a esperança e a emancipação. Diálogo como educação para a liberdade e para a autonomia[4].

Quanto à questão da autonomia no modo de fazer andar a vida, é muito importante considerar o papel da informação e da educação para a vida das pessoas, mas é igualmente imperioso reconhecer que educação e informação são condições necessárias mas não suficientes para a construção da autonomia. A autonomia efetiva vai além desses dois atributos e não se realiza apenas por seu intermédio. Ela se realiza na liberdade e na efetivação do direito de fazer-se sujeito, de escolher caminhos próprios e exercer em plenitude a sua integridade física e moral, dito de outra forma, de exercer a sua cidadania.

Vencida a caracterização dos dois conceitos, inicialmente considerados balizadores pode-se agora tratar diretamente da integralidade. Integralidade enquanto uma utopia possível, enquanto algo que pode se realizar a partir de uma determinada práxis. Ela é, por exemplo, uma das quatro idéias força do movimento da Reforma Sanitária brasileira e, por via de conseqüência, um dos princípios e pressupostos do SUS. A integralidade está definida na lei 8.080/90[5] como “um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema” e para a consideração que aqui é feita, deve ser vista indissociável das outras três consagradas pela legislação e pela história do SUS: universalidade, participação social e equidade.

Vista dessa forma, cabe também considerá-la em duas dimensões ou universos distintos – o micro e o macro – que caracterizam as relações sociais que se dão no âmbito da saúde em cada território, quer se esteja tratando do país, de um estado, de uma região, um município, bairro ou mesmo de uma área de abrangência de uma UBS. A integralidade pode, em termos do SUS, ser vista, inclusive, subsumida na própria universalidade – entendida como acesso aos serviços de saúde do SUS em todos os níveis de assistência e para todos, indistintamente – especialmente quando esta se desdobra pelas várias instâncias de descentralização presididas pelas determinações geo-político-administrativas.

Pode-se pensar ainda a integralidade como algo capaz de se realizar nos diversos serviços de saúde, fruto do esforço de equipes multiprofissionais e interdisciplinares e pelo compromisso de profissionais que exercitem a escuta atenta e cuidadosa dos usuários para identificar suas necessidades de saúde, quem sabe, assim tornando mais eficiente e eficaz as ações que envolvem o cuidado em saúde; ou mesmo como resultado da articulação de cada serviço com uma rede complexa composta por outros serviços e instituições que se encontram mediatizadas por processos, nem sempre simples ou tranqüilos, de gestão.

A integralidade que se realiza no plano micro, âmbito dos serviços, especialmente nos que organizam a atenção primária em saúde, pelo menos em tese, é mais fácil de ser conseguida dado que esses serviços são mais diretamente permeáveis à participação popular. A participação dos destinatários dos serviços de saúde, assim democratiza e humaniza as relações, abre espaço à explicitação de necessidades sentidas pelos usuários junto às equipes e profissionais de saúde; permite que saberes e experiências populares possam ser acolhidas e aproveitadas no planejamento, na execução e na avaliação do desempenho das equipes e, se bem conduzidas, podem produzir uma pedagogia transformadora de usuários e profissionais, então co-responsáveis pelo preenchimento de necessidades coletivas.

A integralidade que se realiza no plano macro depende fortemente de uma rede de múltiplos serviços e de uma gestão que, no mínimo, seja eficiente no contínuo repensar de suas estruturas para que possa responder as exigências de múltiplas necessidades. Mas isso não deve servir para que a integralidade nesta dimensão seja encarada apenas como atributo e realização de uma central de distribuição de usuários que serão “beneficiários” de procedimentos e exames de maior complexidade. É necessário se repensar continuamente a estrutura piramidal da rede de serviços de saúde, mas não só; cada serviço especializado, com o seu conjunto de profissionais, mesmo não tendo atrás de si uma comunidade específica como referência contínua de um território particular – como soe acontecer na atenção primária – e agora oferecendo procedimentos ou exames mais voltados às tecnologias duras, deverá compreender a sua missão e subentender que a escuta atenta e o resgate de singularidades aqui também é compromisso e dever de quem organiza, assim como direito de quem consome esses exames e procedimentos superespecializados. Isso requer radicalizar a idéia de que cada pessoa, com suas múltiplas e singulares necessidades deve ser sempre o foco e a razão de ser de cada serviço e do sistema de saúde como um todo.

Seguindo no exercício de subsumir os princípios e pressupostos do SUS na idéia de integralidade pode-se aventar agora a idéia de que a integralidade pode em última análise também absorver o princípio da eqüidade. Senão vejamos. Eqüidade em saúde é sempre tomada como o esforço de se organizar e oferecer mais e mais ações e serviços – na forma de consultas, procedimentos e exames, assim como de tecnologias que previnam doenças e promovam saúde – para quem sempre teve menos acesso a elas, como forma de se chegar a uma pretensa superação das desigualdades na atenção. A radicalização desse processo, partindo-se de uma escuta eficiente e eficaz, como já referimos anteriormente, poderia então levar a um reconhecimento natural das iniqüidades em que vivem as populações, iniqüidades que nada mais são que determinantes das necessidades de saúde a serem atendidas.

Mas, como isso seria possível na prática? Que instrumentos ajudariam a construção deste ideal do sistema de saúde? O que se quer advogar neste texto é que a conjugação e o diálogo de conhecimentos de várias áreas (ciências da vida e ciências humanas principalmente) com os saberes e as experiências populares + a consideração da realidade de vida e saúde das populações e a acuração de suas necessidades, pode ser o caminho dessa realização.

A epidemiologia, como já ficou demonstrado, quando utilizada corretamente na construção de indicadores, é capaz de fazer um diagnostico preciso das iniqüidades e das condições de vida das populações e servir como instrumento de programação de ações de saúde. O planejamento, por outro lado, ao recolher as informações da epidemiologia trazendo-a para o seu universo, que pressupõe atores em disputa em face de suas visões de mundo, dos conflitos de interesses e da distribuição e exercício de diferentes poderes com potencial para a construção de consensos e tomada de decisão acerca de teorias e métodos de intervenção, estará produzindo políticas capazes de responder às iniqüidades diagnosticadas e pensadas politicamente em vários espaços e dimensões. Podemos associar nesta discussão ainda a economia que cada vez mais tem se desenvolvido enquanto economia da saúde e já se põe pronta como mais um instrumento a ser utilizado na reflexão e na decisão setorial.

E o mais interessante é que essas tecnologias podem ser utilizadas em todas as esferas da atenção e da gestão, desde o macro representado pelo Ministério da Saúde, passando pelas secretarias estaduais e mesmo as secretarias municipais de saúde até o micro, representado pelo espaço singular dos serviços de saúde, quer sejam eles de atenção básica, de “média” ou de “alta complexidade”.


[1] Médico Sanitarista, professor do DN/CCS/UFPB e doutorando em Educação Popular – PPGE/CE/UFPB;
[2] Indicamos a leitura completa do artigo onde se encontra esta definição. A referência completa é: LAURELL, A.C. A saúde-doença como processo social. In: Nunes, E.D. Medicina Social: aspectos históricos e teóricos. Coleção Textos n.º 3, Global Editora, 1983;
[3] Os elementos dessa definição podem ser vistos em CECÍLIO L.C.O. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e eqüidade na atenção em saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social/Universidade do Estado do Rio de Janeiro/ABRASCO; 2001. p. 113-26;
[4] Toda a concepção de diálogo utilizada neste texto foi produzida a partir da leitura de Paulo Freire e pode ser encontrada especialmente nas seguintes obras do autor: FREIRE, P. – Educação Como Prática da Liberdade. 7ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977; FREIRE, P. – Pedagogia do Oprimido. 17ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987; FREIRE, P. – Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 28ª edição. São Paulo, Paz e Terra, 1996; FREIRE, P. – Política e educação. 3ª edição. São Paulo, Cortez, 1997 (Coleção Questões da nossa época; v, 23)
[5] BRASIL. CONGRESSO NACIONAL – Lei n.º 8.080 de 19/09/1990. In: BRASIL, Ministério da Saúde – Gestão Municipal de Saúde: leis, normas e portarias atuais. Rio de Janeiro: Brasil. Ministério da Saúde, 2001;

terça-feira, 4 de julho de 2006

SAÚDE E EDUCAÇÃO POPULAR: A ORGANIZAÇÃO DO CONHECIMENTO A PARTIR DAS EXPERIÊNCIAS E DO “MUNDO DA VIDA”

Lindemberg Medeiros de Araújo[1]

O presente ensaio versa sobre a construção do currículo relativo à saúde no Projeto Escola Zé Peão – uma estratégia de educação de adultos mantida pelo sindicato de trabalhadores da Construção civil e a UFPB. Para cumprir o seu objetivo analisa como alguns elementos da pedagogia freireana entram na discussão da saúde e são introduzidos no currículo específico do projeto, com a finalidade de reorganizar o conhecimento dos seus educadores e educandos. Na discussão, a saúde é entendida como síntese de múltiplas determinações e é trabalhada como uma das questões nodais na construção da cidadania de educadores e educandos.

Palavras Chave: saúde; educação de adultos; cidadania

Introdução

“A prática da liberdade só encontrará adequada expressão numa pedagogia em que o oprimido tenha condições de, reflexivamente, descobrir-se e conquistar-se como sujeito de sua própria destinação histórica” (Fiori, Apud. Freire, 1988: 09)

Há aproximadamente dois anos, participando da programação de um evento[2], pude apreciar uma mesa redonda intitulada Currículo: Leituras em Paulo Freire[3]. Lá se ressaltou a visão de currículo contida na obra freireana, entendido o currículo como um processo que, integrando práticas e reflexões gnosiológicas fundamentam as relações educador/educando; relações estas caracterizadas pela construção do conhecimento inerente ao processo de ensino-aprendizagem e aos processos educativos em geral[4]. As reflexões expostas naquela mesa estimularam o meu exercício gnosiológico no sentido de transportar-me para o meu universo teórico-prático e fazer reverberar a minha experiência de trabalho no Projeto Escola Zé Peão[5], onde presto assessoria na área da saúde mobilizando o currículo que fundamenta a construção de conhecimento dos educadores e educandos com respeito ao tema.

Ao explicitarem as suas leituras sobre como o currículo é uma presença forte e se estende sobre toda a obra freireana, os apresentadores aguçaram e expandiram o meu horizonte para um exercício da interação possível entre a obra de Freire e a práxis da Escola Zé Peão. Foi do desafio desse exercício que nasceram as idéias que mobilizo neste ensaio.

O ensaio versará, assim, sobre como alguns elementos e categorias freireanas estão presentes na discussão do Projeto e são recuperadas na percepção e operacionalização dos temas geradores, que compõem o currículo relativo à saúde com a finalidade de reorganizar o conhecimento de educadores e educandos do projeto; aprofundar a discussão sobre o processo saúde/doença e a sua conexão com a construção da cidadania; finalidade objetiva e explícita no discurso sindical que criou e mantém a Escola[6]. A questão do currículo será, portanto, o tema transversal de todo o ensaio.

A intencionalidade da criação do Projeto Escola Zé Peão e a indução de uma concepção curricular que em si recupera o pensamento freireano



Para melhor esclarecer os leitores, faço aqui uma breve contextualização dos elementos que estiveram presentes na fundação da experiência, já exitosa, do Projeto Escola Zé Peão. Parto dos motivos iniciais explicitados pelo sindicato da categoria, quando em parceria com a Universidade idealizou o Projeto. A leitura de alguns escritos e mesmo a longa convivência com os que formam o grupo político Zé Peão[7] demonstra que o sindicato partiu do entendimento de que “a condição de analfabeto sempre dificulta o trabalho sindical de organização para uma participação mais efetiva nas tomadas de decisão da categoria” (PROJETO ZÉ PEÃO, 1995: 02). Por isso quis o SINTRICOM[8], com a sua iniciativa, contribuir para construção da cidadania desses trabalhadores que, marginalizados, em muitas situações passam a acreditar não existir solução para os problemas sociais, os seus problemas.

Por outro lado, considerando-se a visão da Universidade, a Escola Zé Peão é uma atividade de extensão da Pró-reitoria de Assuntos Comunitários, executada pelo Centro de Educação[9], que permite a instituição sair dos seus muros e contribuir com a formação específica dos seus alunos na perspectiva de atuarem na capacitação social dos trabalhadores da Construção civil, objetivo que é buscado através de estratégias de escolarização e ensino-aprendizagem.

No Projeto a formação desses educadores

“é entendida como um processo contínuo, que abrange não só o período de formação inicial - antes do ingresso em sala de aula – mas também o trabalho de acompanhamento pedagógico de que participa o professor durante toda a sua permanência no Projeto. Essa formação toma como ponto de partida os sujeitos do processo educativo, os operários da indústria da construção - e o contexto em que estão inseridos como trabalhadores, cidadãos, e seres humanos - e visa a instrumentalizar o futuro professor, ou seja, prepará-lo para alfabetizar trabalhadores da construção civil, a partir do entendimento da alfabetização como um processo que possibilita a ampliação e o aprofundamento de sua compreensão da realidade social, por meio da aquisição da linguagem, da matemática e dos conhecimentos gerais, tendo em vista instrumentalizar esses trabalhadores para lhes possibilitar a reivindicação de seus direitos de trabalhadores e cidadãos e sua qualificação profissional”. (PROJETO ZÉ PEÃO, 1998: 58).

É dessa forma que o Projeto...

“tem contribuído de forma valiosa para a formação de professores de alfabetização de adultos, numa perspectiva popular, trabalhando a formação do operário como uma mediação para a formação do educador. Dessa forma, [a UFPB] assume também um compromisso de extrema relevância para a democratização/aquisição do saber escolar pela classe trabalhadora, através da apropriação dos instrumentais de fundamental importância para a sua luta na conquista de sua cidadania”. (PROJETO ZÉ PEÃO, 1998: 06).

Como resultado da sua iniciativa, o sindicato vem pondo em prática a Escola Zé Peão, que visa na sua ação a alfabetização e a pós-alfabetização dos operários da sua categoria, oferecendo-lhes os recursos da linguagem, da matemática e dos estudos sociais e da natureza. Objetiva, com essa ação, oferecer ferramentas que sejam capazes de expandir a capacidade intelectual, crítica e criativa dos trabalhadores da construção civil, para que estes se transformem em pessoas cada vez mais capazes de ler o mundo, suas circunstâncias e significados.

Assim, o Projeto pretende:

“integrar os operários da construção civil à sociedade para que os mesmos se sintam capazes de entender que é fundamental a participação deles para a implementação de um processo de mudança. [E nesta perspectiva,] pressupõe que a atividade educativa seja considerada em seus múltiplos desafios, como, por exemplo, os de natureza político-social (homens concretos lutando por uma vida melhor), histórica (homens situados em um tempo e um espaço) e pedagógica (homens conscientes utilizando metodologias e recursos adequados para a construção do seu saber)“ (PROJETO ZÉ PEÃO, 1998: 13).

Como se pode ver, o posicionamento das duas instituições (sindicato e Universidade), ao proporem o projeto, sugere, desde o início, a idéia de engajamento, de compromisso, de participação, de rejeição a qualquer atitude de alienação ou neutralidade diante das tarefas históricas enfrentadas pelos trabalhadores. Posição que pode ser relacionada diretamente ao pensamento de Paulo Freire quando este afirma que

“Impedidos de atuar, os homens encontram-se profundamente feridos em si mesmos, como seres do compromisso. Compromisso com o mundo, que deve ser humanizado para a humanização dos homens, responsabilidade com estes, com a história. [Mas] Este compromisso com a humanização do homem, que implica uma responsabilidade histórica, não pode realizar-se através do palavrório, nem de nenhuma outra forma de fuga do mundo, da realidade concreta, onde se encontram os homens concretos. O compromisso, próprio da existência humana só existe no engajamento com a realidade, de cujas ‘águas’ os homens verdadeiramente comprometidos ficam ‘molhados’, ensopados. Somente assim o compromisso é verdadeiro. Ao experenciá-lo, num ato que necessariamente é corajoso, decidido e consciente, os homens já não se dizem neutros. A neutralidade frente ao mundo, frente ao histórico, frente aos valores, reflete apenas o medo que se tem de revelar o compromisso. (...) O verdadeiro compromisso é a solidariedade, e não a solidariedade com os que negam o compromisso solidário, mas com aqueles que, na situação concreta, se encontram convertidos em’coisas’”. (FREIRE, 1983: 18-19).

Analisando mais profundamente a intencionalidade explícita dos idealizadores, o projeto em si já funciona como um indutor, como uma diretriz de base para definição de uma concepção curricular; neste caso, perfeitamente sintonizado com a visão freireana de ler a palavra a partir da leitura do mundo, da cultura, da linguagem do educando, do conhecimento popular na sua relação com o saber elaborado pela escola, pela academia. Como muito bem coloca SCOCUGLIA:

“Encontra-se aí implícita a idéia de que os conteúdos programáticos, as metodologias utilizadas e os fundamentos epistemológicos que alicerçam a construção curricular, entre outros, devem estar contextualizados e influenciados pela cultura e pelas experiências de vida dos atores educacionais que estão envolvidos nessa construção...” (SCOCUGLIA, 2003: 01)

Esse mesmo raciocínio também está presente na obra de CAMBI (1999) que ao fazer uma recuperação da história da pedagogia, discute a contribuição de Paulo Freire no contexto das pedagogias radicais do século XX. Analisa que a mesma se desenvolve dentro de um processo em que o educando reconquista a sua própria linguagem, a sua capacidade de tomar a palavra e por ela analisar os significados de sua colocação histórica e social; e assim produzir a emancipação da sua consciência e da sua classe colocando-se em condições de participar da vida civil pela própria reapropriação de si mesmo e da sua consciência.

Poder-se-ia ainda, à guisa de encerramento desta secção, lembrar Paulo Freire, quando este problematiza os desafios e os saberes necessários à prática educativa como uma práxis fundada num diálogo que tem a finalidade de uma reflexão crítica:

“Testemunhar a abertura aos outros, a disponibilidade curiosa à vida, a seus desafios, são saberes necessários à prática educativa. Viver a abertura respeitosa aos outros e, de quando em vez, de acordo com o momento, tomar a própria prática de abertura no outro como objeto de reflexão crítica deveria fazer parte da aventura docente”.(FREIRE, 1996: 153)

A inserção da saúde na organização do currículo da Escala Zé Peão

O debate e a produção de conhecimento sobre a saúde tem evoluído muito nas últimas décadas, especialmente com a sua abertura para outras disciplinas que não apenas as do biológico. Isso tem se refletido, inclusive, no planejamento, execução e avaliação de ações – entre elas as educativas – e serviços que são colocados à disposição da comunidade. Mas, mesmo assim, algumas barreiras ainda persistem e precisam ser quebradas no que tange à organização e democratização do conhecimento produzido e da participação popular no processo. E neste aspecto, um dos primeiros problemas a ser vencido é o do enfoque excessivamente técnico que é dispensado à problemática da saúde e o seu isolamento e limitação aos técnicos e estruturas que atuam na sua assistência e vigilância.

Um dos efeitos do que acabo de afirmar pode ser constatado no fato de que sempre que a saúde é discutida ou avaliada, a discussão ou avaliação se dá partindo-se do exame do seu contrário, da sua negação: a doença. Relaciona-se saúde com bem estar, com vida, com condições econômicas, sociais e ambientais favoráveis, mas, quando se afere o grau de desenvolvimento de uma população, de uma região ou mesmo de um país, toma-se as estatísticas de morbidade e mortalidade, ou seja, a quantidade de doentes e de mortos produzida nas diversas faixas etárias e a quantidade de serviços e de recursos (humanos e materiais) disponíveis, como parâmetro de explicação ou avaliação.

Isso é relativamente fácil de ser compreendido se reconhecermos que o foco da discussão continua centrado preponderantemente na doença e no viés da assistência que sempre irá gerar como produto o restabelecimento ou a morte dos indivíduos. Ou seja, na teoria considera-se que os aspectos econômicos, sócio-culturais e ambientais são determinantes do adoecer e do morrer, ainda que essa visão não seja levada à pratica, o que se daria com a conseqüente incorporação dos destinatários das ações e serviços – vale dizer, dos usuários, da população – à discussão, formulação, execução e avaliação de um conjunto de políticas que podem ter o concurso dos diversos atores sociais como co-participes.

E se assim se procede, talvez se possa inferir que ainda não se enxerga, suficientemente, a dialética relação que está na base dos fenômenos saúde e doença quando estes se expressam no processo social em que estamos inseridos. Em outras palavras: se a doença é produzida socialmente, a saúde também o será desde que sejam criadas as condições para isso. E aí, sem dúvida, a participação popular, a democratização da sociedade e o investimento na informação e na educação em saúde são questões fundamentais.

Nesse sentido, tendo no conhecimento um elemento de proa para a construção de cidadania e assumindo uma visão totalizadora que procura entender a saúde enquanto um processo socialmente construído, é possível assumir o objetivo de organizar o conhecimento dos educadores e educandos a partir das suas próprias experiências de vida e assim resgatar a metodologia e a experiência educativa do Projeto Escola Zé Peão.

A integração do conhecimento específico da saúde nas atividades pedagógicas da “Escola” se dá num diálogo sistemático que envolve todos os participantes da experiência, notadamente os educadores e educandos. Diálogo construído nas salas de aula montadas nos próprios canteiros de obra, nas reuniões, nas visitas pedagógicas e nas oficinas temáticas, um componente fundamental na articulação entre metodologia[10] e conteúdos necessários à formação dos educadores e educandos.

Cidadania e saúde: saúde é cidadania

A construção da cidadania tem sido um dos pontos essenciais da discussão da saúde, especialmente nos últimos trinta anos quando esta passou a ser entendida no seu sentido ampliado: saúde como síntese de múltiplas determinações econômicas, políticas, sociais; saúde e doença como resultantes de um intricado jogo definido pelas condições objetivas de vida de um indivíduo ou população. A ampliação desse conceito alarga e multiplica os espaços de discussão e cria novas possibilidades de evolução do conhecimento, que podem levar ao compromisso e à responsabilidade histórica de humanização do próprio homem, humanização que Freire afirma não poder ser feita de outra forma que não pelo caminho de uma práxis que coloque a realidade concreta frente a homens concretos. (FREIRE, 1983: op.cit).

Neste sentido, uma das discussões que se insere no currículo da saúde e que é levada para as salas de aula, é aquela em que partindo do “mundo da vida[11]” dos educadores e educandos se contrapõe à definição racional-legal da nossa constituição[12]: Saúde: direito de todos e dever do Estado. Ora, aonde isso nos leva senão a decomposição de uma equação que contém dois eixos fundamentais: direito de todos e dever do Estado?

A idéia de efetuar tal decomposição é útil tanto do ponto de vista teórico-prático como metodológico, na medida em que se pode superar uma dificuldade inicial: a de desmistificar a discussão sobre saúde e doença como uma temática apenas dos técnicos e autoridades da saúde, trazendo-a para dentro da escola. Na verdade, os dois eixos trazem dois elementos que estão na base da construção da cidadania no Estado Moderno: a questão da garantia dos direitos e deveres individuais e coletivos e a participação/representação de interesses[13].

A discussão em torno da saúde, assim, transforma-se num debate que coloca cada educador e cada educando diante de si próprio e do seu semelhante e ambos diante da realidade, para tentar perceber a dupla dimensão individual e coletiva da sua qualidade de vida; e a responsabilidade do controle social de políticas que, se bem sucedidas, darão substância à luta pela cidadania e a reinvenção da sociedade que, dita moderna, só consegue ser capitalista e profundamente desigual.

Essa primeira aproximação traz uma necessidade adicional de decompor cada um dos dois eixos numa nova seqüência: de um lado, saúde como direito à vida e como conquista social e do outro, a problematização dos princípios doutrinários e organizativos que regem o nosso sistema de saúde, no caso o Sistema Único de Saúde (SUS) e a operacionalização do conceito de território[14] que nele se encontra embutida enquanto motor da municipalização e da democratização da saúde.

No primeiro tema, a saúde passa a ser entendida como um direito de cidadania, como uma construção social da população nos seus diversos segmentos e organizações sendo, portanto, matéria de domínio também popular e não apenas de técnicos e profissionais de saúde; saúde expressa como direito à vida no seu sentido pleno, determinada por um conjunto de condições e outros direitos que também precisam ser assegurados. É o que se pode depreender, por exemplo, do que está escrito no texto constitucional[15] e na Lei que o regulamenta[16], aliás, textos que foram frutos de intensas lutas e negociações que envolveram os movimentos sociais em geral e o movimento popular de saúde em particular num passado recente. Assim, chega-se a um ponto que nos permite horizontalizar em definitivo a discussão, qual seja, a saúde entendida no seu conceito ampliado e em relação direta com as condições objetivas de vida da população.

Seguindo com este raciocínio, chega-se diretamente noutro ponto, onde a saúde é entendida também como conquista social. Esse entendimento decorre diretamente da discussão anterior que coloca a contradição entre teoria e prática, ou seja, entre a construção ideal da nossa constituição e a realidade da vida cotidiana. Nessa linha, retorna-se à idéia de construção coletiva do direito à saúde colocada no início deste ensaio e à noção da necessidade de promoção da saúde, explícita na definição constitucional.

E aqui, a promoção da saúde deve ser entendida como um processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria da sua qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participação no controle do processo saúde doença; e como busca de aspirações que, identificadas, satisfazem necessidades e modificam favoravelmente o meio ambiente físico e social, para que se atinja um estado, o mais completo, de bem estar bio-psico-social. (BRASIL, 1996).

Esses dois aspectos abrem uma segunda linha de aprofundamento da reflexão que, mais completa e explícita, ajuda a problematizar a segunda dimensão da saúde como conquista social: a promoção da saúde e a construção coletiva do direito à saúde.

Trata-se então de uma recuperação dessa discussão dentro do processo educativo, preservando e utilizando os princípios metodológicos do Projeto e da educação popular[17], ou seja, partindo da valorização do saber e da experiência de cada um já adquirida ao longo da vida; do contexto em que estão inseridos e como as questões de saúde nele se colocam; da significação que o tema assume na sua vida e trabalho e da especificidade dessa discussão tanto em termos práticos na escola como no cotidiano dos atores envolvidos.

Vencidas essas primeiras duas etapas da problematização, é necessário que se faça um exercício semelhante para ressaltar a saúde como dever do Estado; dever que normalmente se expressa através das políticas sociais de cunho setorial, mas que precisam estar integradas no plano geral da regulação da vida da sociedade. E aqui, aquela linha de raciocínio de desmistificar esse tipo de discussão como coisa concernente apenas aos técnicos e fazedores de políticas específicas das diversas áreas e de resumir a discussão da saúde ao plano da assistência, torna-se imperiosa na discussão do dever do Estado na promoção do direito à saúde.

Assim, a primeira questão a ser colocada é a de que ao se falar de Estado fala-se de alguma forma de nós mesmos, na medida em que ele nos engloba, nos envolve, como bem coloca GRAMSCI[18] quando fala da relação entre Estado, hegemonia e sociedade civil. Portanto, pelo menos em tese, somos todos fazedores de políticas, desde que nos coloquemos como tal, que participemos do processo. Para isto, a educação, o conhecimento e a informação são ferramentas que, por excelência, podem balizar a participação e a educação popular.

Para introduzirmo-nos definitivamente nesta área é necessário que busquemos compreender como se expressam as políticas de saúde que tentam responder ao imperativo constitucional. Neste caso, nos deparamos com a formulação do Sistema Único de Saúde – SUS, construção política que nos é muito cara porque síntese de vários movimentos sociais, entre os quais o movimento popular de saúde que atuou e atua de forma profícua nesta área. Assim, para conhecermos o SUS e a sua estrutura torna-se necessário que sejam detalhados os seus princípios doutrinários e organizativos[19] e entendidos os sentidos da participação popular na sua construção.

A definição desta equação nos coloca diante da tarefa de resgatar do texto constitucional esses conjuntos de princípios que, trabalhados na prática, ganham concretude nas lutas em busca da saúde enquanto direito de cidadania. Ou seja, discutindo o dever do Estado, nos encontramos novamente discutindo a saúde como direito de cidadania. E neste caso, universalidade, integralidade, eqüidade na atenção e controle social, além de apresentados como conceito, ganham sentido prático na luta dos educadores e educandos que podem entender como e porque esse direito lhes é negado e como podem se organizar para cobrá-lo das representações políticas do Estado que tem na sua função essa tarefa. Da mesma forma, conhecendo os princípios da descentralização, regionalização, municipalização e hierarquização das ações e serviços, podem organizar as suas lutas por uma saúde cidadã.

A evolução dessa discussão nos leva, inevitavelmente, ao lócus aonde o processo saúde/doença e as questões que dele decorrem acontecem: ao bairro, à rua, ao domicílio, ao campo, a um território. Enfim, ao município. Daí que é importante recuperarmos a discussão sobre o processo de municipalização da saúde, uma das diretrizes do SUS. Mas, é igualmente importante ter presente que é a comunidade, a família, o indivíduo que, sofrendo a privação do seu direito, adoece. E que saúde e doença, nada mais são do que expressões das condições econômicas, sociais, culturais e ambientais da nossa existência. Portanto, cabe esquadrinhar o território em todas as suas dimensões e perceber ali como se expressam esses fenômenos e como eles podem e devem ser enfrentados, em parte pela própria comunidade, em parte (a maior parte sem dúvida) pelos poderes públicos que representam o Estado e necessariamente a própria população, enquanto sociedade civil.

A experiência Zé Peão frente à tradição da educação de adultos no Brasil

“O operário precisa inventar, a partir do próprio trabalho, a sua cidadania que não se constrói apenas com sua eficácia técnica, mas também com sua luta política em favor da recriação da sociedade injusta” (FREIRE, 1996: 114)

A história da educação no Brasil demonstra que, especialmente em relação à educação de adultos, a preocupação central da “instrução” sempre foi a de alimentar o mercado de trabalho e a burocracia estatal com trabalhadores tecnicamente “competentes” para as habilidades que lhes são exigidas; que alfabetizar o adulto brasileiro sempre foi sinônimo de “eliminar a vergonha nacional”, produzir eleitores; ensinar homens e mulheres a ler e escrever, para que o Brasil possa “olhar de igual para igual para as outras nações”; vencer o atraso, desenvolver país. Pensar a formação de pessoas com capacidade crítica e intelectual para recriar a sociedade em seu conjunto e ao seu gosto sempre foi uma tarefa reservada às elites, que por seu turno sempre rejeitou a idéia de homens e mulheres estimulados a serem livres para refletir e construir, coletivamente, o conhecimento necessário a uma vida digna e cidadã. Enfim, a promoção do conhecimento escolar, oferecido aos jovens e adultos, sempre foi técnico e desvinculado das necessidades de aprendizagem da população excluída da escola formal.

Neste sentido, a leitura de PAIVA (1983), quando analisa as campanhas de alfabetização do estado militar ratifica bem essa afirmação. A Cruzada ABC, um exemplo típico, encaixou-se inteiramente nos propósitos da ditadura militar para a educação brasileira pois tinha, claramente, uma proposta de combate aos projetos transformadores de antes de 64. A sua concepção de cultura era autoritária e conservadora, além do que desenvolvia uma visão preconceituosa de que o analfabetismo é que impedia o progresso e o desenvolvimento da nação e que era necessário, portanto, “educar para integrar e desenvolver”. Mas, desde o inicio tornou-se indisfarçável o objetivo da Ditadura em formar cidadãos e eleitores integrados à nova ordem ideológica e política que chamavam sutilmente de “realidade nacional”.

O Mobral, por outro lado, defendia que a escolaridade elementar de adolescentes e adultos “deveria estar ligada a prioridades econômicas e sociais, às necessidades presentes e futuras de mão-de-obra e ressalvava a importância da colaboração de todos(...) (PAIVA: op.cit. 292). Previa o recrutamento de pessoas para formar classes de alfabetização que deveriam valorizar o homem através da aquisição da leitura, da escrita, do cálculo matemático e do aperfeiçoamento dos processos de vida e trabalho “e a integração social desse homem, através do seu reajustamento à família, à comunidade local e à Pátria” (PAIVA: op.cit. 293).

Como se pode ver, o componente ideológico do regime militar estava presente através da exacerbação do nacionalismo. O MOBRAL assumia que suas atividades eram “conscientizadoras”, exatamente no sentido contrário do antes de 64, que era considerado um equívoco por levar a uma politização prematura e mal orientada, numa alusão direta ao método Paulo Freire, inteiramente rechaçado. Quanto à orientação do material didático, este associava “o incentivo ao esforço individual para vencer na vida ao estímulo à adaptação a padrões de vida modernos” (PAIVA: op.cit. 296).

A autora esclarece que não raro os sistemas educativos são hegemonizados mais pela política (leia-se aqui especialmente pelas ideologias) do que por qualquer outro aspecto da vida social e, portanto, acabam por servir mais a conservação do que a mudança. Por isso os sistemas educativos, por si só, não transformam a sociedade ou possuem um poder muito limitado para faze-lo; a não ser em determinadas circunstâncias, como por exemplo, em sociedades em que a educação elementar ainda não se generalizou. Nessas condições as possibilidades dela engendrar transformações aumenta, desde que os sistemas educativos estejam ligados às lutas políticas que numa situação de contra ideologia, coloquem alguns setores e segmentos sociais em situação de disputa pelo poder como possibilidade de transformação do “status quo”.

Esse é, ao meu ver, o principal diferencial da Escola Zé Peão que, como já afirmei no início deste ensaio, tem a sua metodologia, a sua práxis, voltada para o diálogo como inquietação e curiosidade pelas coisas que fazem o cotidiano do mundo da vida; para a partilha do conhecimento entre homens e mulheres que descobrindo as letras se descobrem no mundo e horizontalizam relações, experimentam a sua própria transformação e, sentindo-se transformados, tecem a esperança na sua própria libertação; presos na alegoria de que constroem prédios e mudam a paisagem, constroem as cidades. E se constroem cidades, desenvolvem a consciência e a confiança de que sujeitos concretos podem dar concretude a um outro mundo a uma outra possibilidade de relação entre os homens. Afinal como um deles já disse certa vez em sala de aula: “o homem que constrói um prédio, pode construir qualquer outra coisa”.

E a guisa de encerramento deste ensaio, lembro mais uma vez Paulo Freire:

“Ao fundar-se no amor, na humildade, na fé nos homens, o diálogo se faz uma relação horizontal, em que a confiança de um pólo no outro é conseqüência óbvia. Seria uma contradição se, amoroso, humilde e cheio de fé, o diálogo não provocasse este clima de confiança entre os sujeitos. Por isto inexiste esta confiança na antidialogicidade da concepção ´bancária` de educação. (...)“Se o diálogo é o encontro dos homens para ser mais, não pode fazer-se na desesperança. Se os sujeitos do diálogo nada esperam do seu quefazer, já não pode haver diálogo. O seu encontro é vazio e estéril. É burocrático e fastidioso. (...) não há diálogo verdadeiro se não há nos sujeitos um pensar verdadeiro. Pensar crítico. Pensar que, não aceitando a dicotomia mundo-homens, reconhece entre eles uma inquebrantável solidariedade”. (FREIRE, 1987: 81-82).

ABSTRACT

The construction of the health relative curriculum in the Projeto Escola Zé Peão is in the center of the present essay. In order to accomplish the objective of this essay, an analysis is made on how some elements of the Freire’s pedagogy could be associated to the health discussion and how they are included in the specific curriculum of the project, aiming to reorganize the knowledge of its teachers and students. Among the discussion, health is understood as the synthesis of multiple determinations and is pointed as one of the crucial factors on the citizenship construction.

Key words: health; adults education; citizenship.

REFERÊNCIAS

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FREIRE, P. – Pedagogia do Oprimido. 17ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987;

GRAMSCI, A. – Selections from Prision Notebooks. New York: Internacionational Publishers, 1971;

IRELAND, V.E.J.C. – Alfabetização de Adultos – Ainda a Questão do Método. mimeo. João Pessoa, s.d.;

PAIVA, Vanilda – Educação Popular e Educação de Adultos – Temas Brasileiros II – IBRADES. São Paulo, 2ª Edição Edições Loyola, 1983;

PROJETO ESCOLA ZÉ PEÃO – Projeto enviado à OXFAM. mimeo. João Pessoa, 1995;

PROJETO ESCOLA ZÉ PEÃO – Prêmio Educação para a Qualidade do Trabalho. mimeo. João Pessoa, 1998;

UNGLERT, C.V.S. - Territorialização em sistemas de saúde. In: MENDES, E.V. (Org.) Distrito Sanitário – o processo social de mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. HUCITEC-ABRASCO, 4ª Edição. São Paulo/Rio de Janeiro, 1999;

SCOCUGLIA, A.C. – Paulo Freire: conhecimento, aprendizagem e currículo. mimeo. 15 págs. Texto apresentado no I Colóquio Internacional de Políticas Curriculares. João Pessoa, Nov./2003;


[1]Médico Sanitarista (RMPS/CCS/UFPB, Mestre em Ciências Sociais (CCHLA/UFPB) e Doutorando em Educação Popular (PPGE/CE/UFPB). E-mail: lindembergara@globo.com;
[2]Refiro-me ao I Colóquio Internacional de Políticas Curriculares, evento promovido pelo Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba através Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas Curriculares – GEPPC/CE/UFPB e realizado no período de 12 a 14 de Novembro de 2003. Nesse evento se proporcionou aos pesquisadores e educadores interessados, um espaço de diálogo, reflexão e análise da educação brasileira, do currículo escolar e das diversas práticas sócio-culturais.
[3]A mesa redonda a que me refiro foi composta pelos pesquisadores Afonso Celso Scocuglia, Maria Eliete Santiago e Alder Júlio Ferreira Calado.
[4]Conferir em: SCOCUGLIA, A.C. – Paulo Freire: conhecimento, aprendizagem e currículo, texto preparado especialmente para comunicação no I Colóquio Internacional de Políticas Curriculares.
[5]A Escola Zé Peão é um projeto desenvolvido pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil e do Mobiliário de João Pessoa – SINTRICOM – em parceria com a Universidade Federal da Paraíba (UFPB), através do Centro de Educação, Campus I.
[6]Ressalto aqui a oportunidade que tive, há pouco mais de dez anos atrás, de elaborar ao lado dos integrantes do grupo Zé Peão a minha dissertação de mestrado intitulada Trabalho e Saúde-Doença nas Industrias da Construção Civil – Edificações – de João Pessoa. Lá, além de acompanhar e testemunhar o trabalho da diretoria sindical da época, pude organizar com ela várias iniciativas e intervenções que discutiam a conquista da saúde como realização mesma da cidadania.
[7] Esse grupo foi constituído em 1981 como uma oposição sindical que representava além dos anseios da categoria uma forte resistência ao atrelamento sindical aos patrões e ao Estado, além da luta por sindicatos livres e combativos, num movimento que ficou conhecido como “novo sindicalismo”. Mesmo tendo sido derrotado na primeira disputa, em 1983, o Zé Peão logrou êxito numa disputa subseqüente em 1986 e desde então dirige o SINTRICOM.
[8] Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil e do Mobiliário de João Pessoa.
[9] Na verdade, o Centro de Educação nessa tarefa recebe a colaboração de professores de diversas áreas do conhecimento que compõem um grupo de assessores que interage de forma interdisciplinar com a coordenação pedagógica na formação mais específica dos educadores e educandos do Projeto. No caso, os educadores são em sua maioria alunos das diversas licenciaturas oferecidas pelo Centro de Educação, ainda que a experiência também esteja aberta para outros alunos, de outras áreas, que cursem as licenciaturas da UFPB.

[10]As ações educativas que caracterizam o projeto se pautam em três princípios metodológicos básicos: o da contextualização, o da significação operativa e o da especificidade escolar. Assim, procuro explorar a temática da saúde considerando estas dimensões e recuperando-as no pano de fundo das discussões que mobilizam o currículo do projeto: a construção da cidadania dos alunos/operários. Para maiores detalhes sobre a metodologia, ver: IRELAND, V.E.J.C. – Alfabetização de Adultos – Ainda a Questão do Método. mimeo. João Pessoa, s.d.
[11]A expressão “mundo da vida” é aqui utilizada no sentido oferecido por Habermas através da teoria da ação comunicativa, fundada na linguagem e que se expressa na busca do consenso entre os indivíduos por intermédio do diálogo, da razão comunicativa. Essa razão comunicativa, que se encontra na esfera cotidiana de educadores e educandos, é constituída pelos elementos da cultura, da personalidade e da inserção de cada um na sociedade (esfera pública) e na família (esfera privada).
[12] Na prática essa discussão sempre nasce de demandas dos próprios educandos, que trazem para a sala de aula as agruras e dificuldades que sofrem junto com suas famílias, no dia-a-dia, quando adoecem ou demandam ações ao Sistema Único de Saúde. As situações trazidas sempre dão conta da grande distância ainda existente entre o direito a uma vida saudável e a uma atenção à saúde, digna e a satisfação desse direito no âmbito dos seus municípios.
[13]A questão da representação de interesses pode ser entendida no contexto da noção de estado ampliado presente obra de GRAMSCI e repercutida por Carlos Nélson Coutinho, quando afirma que buscando uma base material para o consenso, a classe dominante, através do Estado, faz concessões a classe dominada permitindo que alguns dos seus interesses sejam representados no Estado e influam nas políticas públicas. (COUTINHO, 1989)
[14] Quando falamos de território, estamos aqui assumindo a definição de UNGLERT: “cenário estabelecido por atores sociais no desenrolar de um processo em que os problemas de saúde se confrontam com serviços prestados e onde necessidades cobram ações. Representa muito mais que uma superfície geográfica, tendo um perfil demográfico, epidemiológico, administrativo, tecnológico, político e social que o caracteriza e se expressa num território em permanente construção”. Mais detalhes, ver: UNGLERT, C.V.S. · TERRITORIALIZAÇÃO EM SISTEMAS DE SAÚDE. In: MENDES, E.V. (Org.) Distrito Sanitário – o processo social de mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. HUCITEC-ABRASCO, 4ª Edição. São Paulo/Rio de Janeiro, 1999”;
[15] “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e de outros agravos e o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação” (BRASIL C.F, 1988, art. 196).
[16] “A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do País” (BRASIL, L.O.S, 1990, art. 3º).
[17] Educação popular entendida como relação dialógica, troca e síntese de saberes entre sujeitos em construção de conhecimento; construção coletiva plena de sentidos, de historicidade, de cultura; possibilidade de afirmação de identidade e de reciprocidade.
[18] “O Estado é o complexo das atividades práticas e teóricas com o qual a classe dominante não somente justifica e mantém a dominação como procura conquistar o consentimento ativo daqueles sobre os quais ela governa (...) Estado inclui elementos que também são comuns na noção de sociedade civil (neste sentido poder-se-ia dizer que Estado = sociedade política + sociedade civil), em outras palavras, hegemonia garantida pela couraça da coerção”. (GRAMSCI, 1971: 244 e 263)
[19] Considerando os princípios doutrinários, temos a universalidade, que deve ser entendida como a distribuição de ações e serviços de saúde de modo a que todos, indistintamente, tenham acesso à atenção em todos os níveis do sistema; a integralidade, que por sua vez diz respeito a um conjunto articulado e contínuo de ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso, em todos os níveis de complexidade do sistema; a equidade que significa a organização e distribuição de ações e serviços, à população, de acordo com as suas necessidades, ou seja, oferecer atenção desigual aos desiguais; e o controle social, que diz respeito a participação popular e o envolvimento ativo e consciente dos usuários nas decisões sobre a definição de prioridades e organização da atenção à saúde. Por seu turno, descentralização, regionalização, municipalização e hierarquização, devem ser entendidas como a forma pela qual os estados e municípios assumindo competências relativas à formulação e gestão das políticas de saúde nos seus territórios, organizam e executam ações e serviços o mais perto possível dos domicílios dos seus usuários. Com relação a hierarquização é preciso que se leve em conta a capacidade técnica e tecnológica de cada município. A municipalização aprofunda o vínculo entre população, profissionais e serviços de saúde; favorece o controle social; facilita a formulação e agiliza a execução, acompanhamento e avaliação das ações sob responsabilidade do município.