sexta-feira, 7 de julho de 2006

O desafio da integralidade no contexto da saúde e do Sistema Único de Saúde

Lindemberg Medeiros de Araújo[1]

A integralidade é, será sempre, um objetivo da atenção à saúde. Um horizonte a ser perseguido quando considerado o Sistema Único de Saúde (SUS) e a busca de sua realização plena. Talvez por isso, para se chegar a uma noção mais profunda sobre o seu significado seja aconselhável que se parta de dois outros conceitos que lhe parecem balizadores: o de processo saúde-doença e o de necessidades de saúde.

Processo saúde-doença aqui deve ser compreendido dentro da tradição da medicina social latino americana, ou seja, como um processo social que possui determinantes e condicionantes sócio-econômicos, político-sociais, sócio-culturais e ambientais, pois, foi a partir dessa compreensão de determinantes e condicionantes que se pôde chegar a uma definição, talvez a mais acabada:

“Por processo saúde doença da coletividade deve ser entendido o modo específico pelo qual ocorre, nos grupos, o processo biológico de desgaste e reprodução, destacando como momentos particulares a presença de um funcionamento biológico diferente, com conseqüências para o desenvolvimento regular das atividades cotidianas, isto é, o surgimento da doença (...) modo como o homem se apropria da natureza em um dado momento, apropriação que se realiza por meio do processo de trabalho baseado em determinado desenvolvimento das forças produtivas e relações sociais de produção” (LAURELL, 1983)[2]

Por essas definições pode-se concluir que os homens são, a um só tempo, corpos biológicos e corpos sociais e que a dupla determinação biológica e social da saúde-doença tem um caráter histórico de reprodução onde o padrão social de reprodução biológica determina o marco dentro do qual a doença é gerada.

Necessidade de saúde, por seu turno, pode ser definida como um conjunto de atributos que, presentes ou ausentes na vida das pessoas e das coletividades, influencia direta ou indiretamente no seu estado de saúde. Nessa perspectiva as necessidades de saúde dependem: a) das condições de vida das pessoas ou coletividades; b) do acesso às tecnologias que melhoram ou prolongam a vida; c) do vínculo afetivo efetivo existente entre os usuários de ações e serviços e as equipes ou profissionais de saúde; e d) do grau de autonomia de cada pessoa no seu modo de conduzir a vida[3].

Quando se faz referencia a condições de vida, na verdade se está querendo argumentar que estas condições podem ser, e normalmente o são, muito diversas; e que esta diversidade gera distintos modos de vida que por sua vez se traduzem em diferentes necessidades de saúde. Isso tem um claro rebatimento, por exemplo, sobre a necessidade de acesso a serviços e ações de saúde e, assim, às tecnologias que melhoram a saúde e prolongam a vida. Neste caso é importante reconhecer que o valor de uso de cada tecnologia é determinado pela necessidade de cada pessoa, em cada momento. As tecnologias aqui referidas podem ser tanto as “duras”, ou seja, as que se baseiam nos processos técnicos específicos das ciências físicas e naturais – que produzem máquinas e equipamentos que são utilizados na assistência direta a quem delas necessitar em algum momento ou lugar do sistema de saúde – quanto às tecnologias ditas “leves” que são aquelas produzidas através dos processos sociais protagonizados por expressões das ciências humanas. (CECÍLIO, 2001, op.cit.)

Sobre a questão do vínculo afetivo efetivo, se quer referir àquele que se baseia sempre na relação contínua, pessoal e calorosa entre os atores que se encontram na cena própria dos cuidados em saúde na convivência e na sensibilidade que, juntas, são capazes de construir relações conscientes, críticas; mas ao mesmo tempo pacíficas, porque construídas através do diálogo. Diálogo como abertura respeitosa ao outro e no outro, como síntese do eu e do tu na disponibilidade curiosa à vida, no ser mais. Diálogo que só existe verdadeiramente na relação horizontal, fundada na confiança mútua, na fé nos homens, no amor, na humildade, na curiosidade criativa diante da inconclusão do mundo, da nossa própria inconclusão. Diálogo como aposta na solidariedade, na partilha, na ética e na fraternidade entre os homens; no compromisso inquebrantável com a esperança e a emancipação. Diálogo como educação para a liberdade e para a autonomia[4].

Quanto à questão da autonomia no modo de fazer andar a vida, é muito importante considerar o papel da informação e da educação para a vida das pessoas, mas é igualmente imperioso reconhecer que educação e informação são condições necessárias mas não suficientes para a construção da autonomia. A autonomia efetiva vai além desses dois atributos e não se realiza apenas por seu intermédio. Ela se realiza na liberdade e na efetivação do direito de fazer-se sujeito, de escolher caminhos próprios e exercer em plenitude a sua integridade física e moral, dito de outra forma, de exercer a sua cidadania.

Vencida a caracterização dos dois conceitos, inicialmente considerados balizadores pode-se agora tratar diretamente da integralidade. Integralidade enquanto uma utopia possível, enquanto algo que pode se realizar a partir de uma determinada práxis. Ela é, por exemplo, uma das quatro idéias força do movimento da Reforma Sanitária brasileira e, por via de conseqüência, um dos princípios e pressupostos do SUS. A integralidade está definida na lei 8.080/90[5] como “um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema” e para a consideração que aqui é feita, deve ser vista indissociável das outras três consagradas pela legislação e pela história do SUS: universalidade, participação social e equidade.

Vista dessa forma, cabe também considerá-la em duas dimensões ou universos distintos – o micro e o macro – que caracterizam as relações sociais que se dão no âmbito da saúde em cada território, quer se esteja tratando do país, de um estado, de uma região, um município, bairro ou mesmo de uma área de abrangência de uma UBS. A integralidade pode, em termos do SUS, ser vista, inclusive, subsumida na própria universalidade – entendida como acesso aos serviços de saúde do SUS em todos os níveis de assistência e para todos, indistintamente – especialmente quando esta se desdobra pelas várias instâncias de descentralização presididas pelas determinações geo-político-administrativas.

Pode-se pensar ainda a integralidade como algo capaz de se realizar nos diversos serviços de saúde, fruto do esforço de equipes multiprofissionais e interdisciplinares e pelo compromisso de profissionais que exercitem a escuta atenta e cuidadosa dos usuários para identificar suas necessidades de saúde, quem sabe, assim tornando mais eficiente e eficaz as ações que envolvem o cuidado em saúde; ou mesmo como resultado da articulação de cada serviço com uma rede complexa composta por outros serviços e instituições que se encontram mediatizadas por processos, nem sempre simples ou tranqüilos, de gestão.

A integralidade que se realiza no plano micro, âmbito dos serviços, especialmente nos que organizam a atenção primária em saúde, pelo menos em tese, é mais fácil de ser conseguida dado que esses serviços são mais diretamente permeáveis à participação popular. A participação dos destinatários dos serviços de saúde, assim democratiza e humaniza as relações, abre espaço à explicitação de necessidades sentidas pelos usuários junto às equipes e profissionais de saúde; permite que saberes e experiências populares possam ser acolhidas e aproveitadas no planejamento, na execução e na avaliação do desempenho das equipes e, se bem conduzidas, podem produzir uma pedagogia transformadora de usuários e profissionais, então co-responsáveis pelo preenchimento de necessidades coletivas.

A integralidade que se realiza no plano macro depende fortemente de uma rede de múltiplos serviços e de uma gestão que, no mínimo, seja eficiente no contínuo repensar de suas estruturas para que possa responder as exigências de múltiplas necessidades. Mas isso não deve servir para que a integralidade nesta dimensão seja encarada apenas como atributo e realização de uma central de distribuição de usuários que serão “beneficiários” de procedimentos e exames de maior complexidade. É necessário se repensar continuamente a estrutura piramidal da rede de serviços de saúde, mas não só; cada serviço especializado, com o seu conjunto de profissionais, mesmo não tendo atrás de si uma comunidade específica como referência contínua de um território particular – como soe acontecer na atenção primária – e agora oferecendo procedimentos ou exames mais voltados às tecnologias duras, deverá compreender a sua missão e subentender que a escuta atenta e o resgate de singularidades aqui também é compromisso e dever de quem organiza, assim como direito de quem consome esses exames e procedimentos superespecializados. Isso requer radicalizar a idéia de que cada pessoa, com suas múltiplas e singulares necessidades deve ser sempre o foco e a razão de ser de cada serviço e do sistema de saúde como um todo.

Seguindo no exercício de subsumir os princípios e pressupostos do SUS na idéia de integralidade pode-se aventar agora a idéia de que a integralidade pode em última análise também absorver o princípio da eqüidade. Senão vejamos. Eqüidade em saúde é sempre tomada como o esforço de se organizar e oferecer mais e mais ações e serviços – na forma de consultas, procedimentos e exames, assim como de tecnologias que previnam doenças e promovam saúde – para quem sempre teve menos acesso a elas, como forma de se chegar a uma pretensa superação das desigualdades na atenção. A radicalização desse processo, partindo-se de uma escuta eficiente e eficaz, como já referimos anteriormente, poderia então levar a um reconhecimento natural das iniqüidades em que vivem as populações, iniqüidades que nada mais são que determinantes das necessidades de saúde a serem atendidas.

Mas, como isso seria possível na prática? Que instrumentos ajudariam a construção deste ideal do sistema de saúde? O que se quer advogar neste texto é que a conjugação e o diálogo de conhecimentos de várias áreas (ciências da vida e ciências humanas principalmente) com os saberes e as experiências populares + a consideração da realidade de vida e saúde das populações e a acuração de suas necessidades, pode ser o caminho dessa realização.

A epidemiologia, como já ficou demonstrado, quando utilizada corretamente na construção de indicadores, é capaz de fazer um diagnostico preciso das iniqüidades e das condições de vida das populações e servir como instrumento de programação de ações de saúde. O planejamento, por outro lado, ao recolher as informações da epidemiologia trazendo-a para o seu universo, que pressupõe atores em disputa em face de suas visões de mundo, dos conflitos de interesses e da distribuição e exercício de diferentes poderes com potencial para a construção de consensos e tomada de decisão acerca de teorias e métodos de intervenção, estará produzindo políticas capazes de responder às iniqüidades diagnosticadas e pensadas politicamente em vários espaços e dimensões. Podemos associar nesta discussão ainda a economia que cada vez mais tem se desenvolvido enquanto economia da saúde e já se põe pronta como mais um instrumento a ser utilizado na reflexão e na decisão setorial.

E o mais interessante é que essas tecnologias podem ser utilizadas em todas as esferas da atenção e da gestão, desde o macro representado pelo Ministério da Saúde, passando pelas secretarias estaduais e mesmo as secretarias municipais de saúde até o micro, representado pelo espaço singular dos serviços de saúde, quer sejam eles de atenção básica, de “média” ou de “alta complexidade”.


[1] Médico Sanitarista, professor do DN/CCS/UFPB e doutorando em Educação Popular – PPGE/CE/UFPB;
[2] Indicamos a leitura completa do artigo onde se encontra esta definição. A referência completa é: LAURELL, A.C. A saúde-doença como processo social. In: Nunes, E.D. Medicina Social: aspectos históricos e teóricos. Coleção Textos n.º 3, Global Editora, 1983;
[3] Os elementos dessa definição podem ser vistos em CECÍLIO L.C.O. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e eqüidade na atenção em saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social/Universidade do Estado do Rio de Janeiro/ABRASCO; 2001. p. 113-26;
[4] Toda a concepção de diálogo utilizada neste texto foi produzida a partir da leitura de Paulo Freire e pode ser encontrada especialmente nas seguintes obras do autor: FREIRE, P. – Educação Como Prática da Liberdade. 7ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977; FREIRE, P. – Pedagogia do Oprimido. 17ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987; FREIRE, P. – Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 28ª edição. São Paulo, Paz e Terra, 1996; FREIRE, P. – Política e educação. 3ª edição. São Paulo, Cortez, 1997 (Coleção Questões da nossa época; v, 23)
[5] BRASIL. CONGRESSO NACIONAL – Lei n.º 8.080 de 19/09/1990. In: BRASIL, Ministério da Saúde – Gestão Municipal de Saúde: leis, normas e portarias atuais. Rio de Janeiro: Brasil. Ministério da Saúde, 2001;

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